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A mostrar mensagens de janeiro, 2019

SEM PEDRAS NÃO HÁ ARCO

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Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra. - Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan? - A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam. Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta: - Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa. Polo responde: - Sem pedras não há arco. Italo Calvino, As cidades invisíveis. Tradução de José Colaço Barreiros. Editorial Teorema (2008).                                                                         Ponde di Rialto, o coração histórico de Veneza. O diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan é uma bonita metáfora sobre organização social e que nos leva a um encantador pergaminho metafísico. Para que as pedras encaixem uma na outr...

A VERDADE QUE SÓ AS TREVAS TRAZEM

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Em nome dos que choram, Dos que sofrem, Dos que acendem na noite o facho da revolta E que de noite morrem, Com a esperança nos olhos e arames em volta. Em nome dos que sonham com palavras De amor e paz que nunca foram ditas, Em nome dos que rezam em silêncio E falam em silêncio E estendem em silêncio as duas mãos aflitas. Em nome dos que pedem em segredo A esmola que os humilha e os destrói E devoram as lágrimas e o medo Quando a fome lhes dói. Em nome dos que dormem ao relento Numa cama de chuva com lençóis de vento O sono da miséria, terrível e profundo. Em nome dos teus filhos que esqueceste, Filho de Deus que nunca mais nasceste, Volta outra vez ao mundo! Ary dos Santos, Kyrie,    José Ary dos Santos, Liturgia do Sangue, 1963.                      Mozart: Grande Missa em Dó Menor, K427 – Kyrie.                 ...

VOLTAR ONDE JÁ FOMOS FELIZES

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                                          “Nada é mais inabitável do que o lugar onde fomos felizes.” - Cesar Pavese   Quantas vezes ouvimos a expressão que “não devemos voltar onde já fomos felizes”? Será que Cesare Pavese tinha razão? Será que foi feliz? Pavese era implacável com os lugares onde se foi feliz. Eram inabitáveis, ponto. Mas nós insistimos em voltar aos locais onde temos boas recordações e, se for necessário, inventamos até felicidades passadas como consolação para subsistirmos ao sarro dos dias. A ideia de repetição é uma constante no nosso comportamento; repetir onde já fomos felizes. É disso que nos fala “This Old house”, uma metáfora de uma felicidade passada. A canção reenvia-nos para um espaço onde “Onde cada porta está aberta”, como modo de viver onde não existem segredos e tudo é partilhado e transparente. No fundo, “This ol...

Além da linguagem

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                                                                     Foi um dia, e outro dia, e outro ainda. Só isso: o céu azul, a sombra lisa, o livro aberto. E algumas palavras. Poucas, ditas como por acaso. Eram contudo palavras de amor. Não propriamente ditas, antes adivinhadas. Ou só pressentidas. Como folhas verdes de passagem. Um verde, digamos, brilhante, de laranjeiras. Foi como se de repente chovesse: as folhas, quero dizer, as palavras brilharam. Não que fossem ditas, mas eram de amor, embora só adivinhadas. Por isso brilhavam. Como folhas molhadas. Eugénio de Andrade, In Os Sulcos da Sede, 2001 Nota:Nem todas as coisas são apreensíveis ou dizíveis, a linguagem não chega a tanto. É dessa simultaneidade e desse limite que nos fala o poema, isto é, as palavr...

O TEMPO, O SILÊNCIO, A ÉTICA E A POESIA ALQUÍMICA DE PAUL CELAN

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Imagem: Anselm Kiefer, sem título. Óleo, acrílico, carvão, chumbo, ramos e gesso sobre tela. 330 x 380 cm. 2006.                                                                   Anselm Kiefer presta recorrentemente homenagem a Paul Celan e nela reflecte a âncora da sua obra na história. As suas obras incorporam as palavras do poeta. Ambos falam de vidas singulares suspensas num silêncio, pictórico no caso de Kiefer. Nesta gigantesca tela os ramos carbonizados que estão num plano mais próximo parecem dirigir-se a nós a rastejar à procura de uma saída. Como escapar a um destino de cabeças vergadas, parece ser a pergunta que emana do quadro. Os temas de Celan que Kiefer retrata, servem como meio para evitar a amnésia colectiva diante das brutalidades e tragédias históricas. É sobejamente conhecido o veredi...

A MÚSICA DO AMOR IMPREVISTO

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                                                           O domínio da composição, do instrumento e da harmonia eternizaram este homem. Do piano, faz sair todo um mundo. Há, em Bill Evans, uma faculdade de linguagem pianística, uma energia da fala, poética, por assim dizer, mas que se manifesta pela expressão dos símbolos musicais. Desses símbolos, dá conta My Foolish Heart, numa abordagem que ocorre ao atingir o equilíbrio entre o género clássico e o jazz e possui a mesma miríade de moldes emotivos - uma brincadeira agridoce, ligeiramente obscura - que há muito distinguiu as suas composições. Evans proporciona-nos uma graça contemplativa, quer dizer, meditativa, impondo um lirismo que é uma constante na sua música. A história da melodia de My Foolish Heart é rica, permeando todas as fendas da majestosa beleza que a define: um cal...

O romance é a epopeia do mundo sem deuses.

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                                                                                 “A psicologia do herói do romance é o campo de actividade do demónio. A vida biológica e social tem uma propensão muito profunda para se fixar na sua própria imanência: os homens aspiram simplesmente a viver e as estruturas sociais a manter-se intactas; e o afastamento, a ausência de um Deus activo tornaria omnipotente a inércia dessa vida que se basta a si mesma e se abandona em paz à sua própria estagnação se não acontecesse aos homens, dominados pelo poder do demónio, elevar-se por vezes acima de si mesmos - de uma maneira infundada e infundável - e renunciar aos fundamentos psicológicos e sociológicos da sua própria existência. É então que esse mundo abandonado por Deus se revela de repente com...

MATAR POR AMOR

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                                                               Esta faz parte da História, da minha história. Uma canção desencantada, trágica, elegante, sofisticada, triste, meditativa, abrasiva, crítica, ácida e afiada até ao osso. O ritmo alegre e insistente engana, a letra, fala sobre como é falso o sentimento do amor, ou sobre a violência por amor. Aqui tudo é roubado: ricos, remediados, pobres e muito pobres - até corações. Nada escapa. Poderia ser uma canção sobre gangues. Nada disso. Morrissey ao incluir Hector como personagem torna tudo muito mais universal. Hector, como se sabe, foi o primeiro dos troianos que teve de enfrentar Aquiles na guerra de Troia. A guerra começou por uma história de amor, o amor por Helena. Hector foi massacrado por defendê-la, foi “ o primeiro do gangue a morrer” , e os gregos, massacr...

OS VALORES E O SENTIDO DO MUNDO

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                                                             Se perguntarmos aos homens de letras quais os autores que fazem parte do Olimpo da literatura do século XX, invariavelmente, a resposta aponta para os quatro nomes que constituem o quarteto revolucionário; Marcel Proust, Franz Kafka, James Joyce, Robert Musil e, nos círculos mais intelectuais, Hermann Broch. Hannah Arendt, George Steiner ou Milan Kundera, são apenas alguns dos grandes críticos que reconhecem Broch como uma figura proeminente colocada no cume desse panteão. Com sólida formação em matemática, filosofia e psicologia - Hermann Broch nasce poeta.  Lê-lo é regressar ao mais essencial da palavra e à sua modulação. Transforma-se num autor sem biografia, como dirá em carta de 5 de Dezembro de 1948 :”partilho alguma coisa com Kafka e Musil: nenhum de nó...

RETRATO DE UM VICE-PRESIDENTE AQUANDO JOVEM CÃO

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Palavras chave: Satanás, o capitalismo de amigos, o islão, e um cão chamado Dick Cheney.                                                          Christian Bale venceu o Globo de Ouro 2019 para melhor actor com o filme “Vice”, que tem estreia marcada para Portugal a 14 de fevereiro. É um retrato sarcástico do antigo vice-presidente americano Dick Cheney durante os mandatos de George W. Bush. O filme pode ter sido um dos derrotados da cerimónia dos Globos de Ouro, mas o seu único prémio entre seis nomeações deu que falar, isto porque, se entre os vencedores houve quem não se esquecesse de agradecer a Deus, já Christian Bale, agradeceu a Satanás pela inspiração para desempenhar o papel de Dick Cheney.   Está por isso na altura de resgatar uma das minhas canções preferidas de David Bowie. “Fall Dog Bombs the Moon” foi escrita ...

O MEDO DA INSIGNIFICÂNCIA

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                                                              Para Theodor Adorno, ideologia, hoje, significa sociedade enquanto aparência. O juízo, de tão gasto, não merecia consideração, caso não assentasse em pressupostos de clareza reflexiva de uma morte que não se quer anunciada por suporte digital. De Hegel a Fukuyama, o proclamado fim da História, o mundo revelou-se global, indiferente a valores transcendentes ou a ideologias. Com efeito, nenhum ideal anima o curso do mundo. Editado em 2012, “ O medo da insignificância”, do psicanalista Carlo Strenger, investigou o impacto da globalização na identidade, a obsessão de uma ideia de viver uma vida espetacular, de sucesso e celebridade. Concluiu que a questão define-se nestes termos: “estou classificado (seja pelo Facebook ou a revista Forbes), logo existo”. Para Strenger, é...

NADA É SUFICIENTE PARA SE MORRER

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                                                                   Wassily Kandinsky, Azul Celeste, 1940. - Nunca pensou escrever um romance? - Sou um autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo leitor de perguntas. Mais nada. - Basta para uma vida? - Nem sei se basta para uma verdadeira morte. Nada é suficiente para se morrer. Ou é suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno objecto eléctrico, embora seja tão pequeno e a noite por todos os lados do quarto pareça interminável. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — são raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para enlouquecer as pessoas, rende tanto como a política, trata-se de política, a sinistra política dos tratamentos —, vivia numa ilha, est...

O APOCALIPSE LENTO

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                                                                          Palavras-chave: 9/11, Patriot Act, Abu Ghraib, Doomsday/Bloomsday.                                                                                                                      Aos primeiros acordes de “Slow Burn”, profundamente marcados pelo ritmo da guitarra de Pete Townshend (mas que não aparece no vídeo),logo a sonoridade se nos afigura familiar obedecendo a uma concepção genérica de Bowie, colada à linha melódica ...

O BANAL UNIVERSAL

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                                                         «O “rosto humano”, com o seu valor cultural, desapareceu há já bastante tempo da fotografia. A época do Facebook e do Photoshop torna o rosto humano uma face que se dissolve por completo no seu valor de exposição. A face é o rosto exposto sem a “aura do olhar”. É o rosto humano sob a forma de mercadoria. A face, enquanto superfície, é mais transparente do que esse rosto ou essa cara que, para Emmanuel Levinas, constitui o lugar eminente onde irrompe a transcendência do outro. A fotografia digital apaga toda a negatividade, uma vez que já não precisa nem de câmara nem de revelação. Não é precedida por negativo algum. É um positivo puro. Apagam-se o devir, o envelhecer, o morrer (…). O destino não é transparente. Falta à fotografia transparente, a condensação semântica e temporal. ...