O APOCALIPSE LENTO
Palavras-chave:
9/11, Patriot Act, Abu Ghraib, Doomsday/Bloomsday.
Aos
primeiros acordes de “Slow Burn”, profundamente marcados pelo ritmo da guitarra
de Pete Townshend (mas que não aparece no vídeo),logo a sonoridade se nos afigura
familiar obedecendo a uma concepção genérica de Bowie, colada à linha melódica
épica de Heroes, onde pontuam os seus vocais.
Apesar de
não haver nenhuma evidência de que a atmosfera de pânico do pós 9/11 tenha desempenhado
um papel de suporte de "Slow Burn", o mínimo que se pode dizer é que
estamos perante uma canção de inspiração bíblica e premonitória. Isto, porque Bowie
disse que tinha escrito a letra antes dos ataques às torres gémeas, o que o
tinha deixado bastante perturbado, porque tinha antecipado a sensação de viver
no centro de Manhattan nos anos subsequentes, isto é, um medo subterrâneo que a todos perseguia. Ofereceu-nos, contudo, um aviso prévio sobre a segurança nos
Estados Unidos: "As paredes devem
ter olhos e as portas têm ouvidos"; numa referência bíblica ao
Evangelho de Lucas 12: 3:
“Porque não há nada oculto que não
venha a descobrir-se, e nada há escondido que não venha a ser conhecido.
Pois o que dissestes às escuras será
dito à luz; e o que falastes ao ouvido, nos quartos, será publicado de cima dos
telhados.”
Lucas 12:2,3.
Superiormente
cantada, a letra é contundente, profética, e escrita anos antes de Patriot Act,
Abu Ghraib, com tudo o que aí possa tropeçar: liberdades, direitos e garantias.
No inquietante refrão surgem as demandas retóricas, salvo as suas respostas: "mas quem somos nós - quem sabe?” No
fundo, Slow Burn, é uma canção sobre sociedades condenadas uma vez que “ardemos lentamente”. Bowie recria de
facto, longe de qualquer beatitude, uma argila Nova-iorquina de negatividade e de
desconfiança, em que a liberdade assenta na sua própria vigilância.
“Slow Burn” vai
sangrando e vertendo em apocalipse, um reconhecimento de que, após o 11 de Setembro
de 2001, apercebemo-nos que as previsões catastróficas têm a frequência e a
emoção de um comboio descomandado à escala global. O ritmo repetitivo e quase estático
“às voltas e voltas e voltas…“ remete-nos
a Eclesiastes, de que “não há nada novo
debaixo o sol” a cada catástrofe que se vive. Sempre em loop, o texto passa
a noção ubíqua de Doomsday - o dia do Juízo Final - que nos deixa entregue a um
jogo de palavras com Bloomsday, de Joyce, uma vez que, no nosso deambular errático,
em que o fim está longe de terminar, mas de repetir-se “uma e outra vez… ardendo lentamente”, vamos caminhando para a noite
de um apocalipse lento.
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