NADA É SUFICIENTE PARA SE MORRER
- Nunca
pensou escrever um romance?
- Sou um
autor de folhetos, acho que interrogativos, e sobretudo um muito interrogativo
leitor de perguntas. Mais nada.
- Basta para
uma vida?
- Nem sei se
basta para uma verdadeira morte. Nada é suficiente para se morrer. Ou é
suficiente cruzar os olhos com os de uma leoa materna. Ou brandir esse pequeno
objecto eléctrico, embora seja tão pequeno e a noite por todos os lados do
quarto pareça interminável. Conheci um homem, um psiquiatra descontente — são
raros, os psiquiatras descontentes, conheço-os muito contentes a ganhar para
enlouquecer as pessoas, rende tanto como a política, trata-se de política, a
sinistra política dos tratamentos —, vivia numa ilha, este, descontente,
adorava falar de estrelas, constelações, sabia tudo, mas era, digamos,
estelarmente irredutível: estava contra a ordem celeste. Mandou substituir o
tecto do quarto de dormir por uma abóbada com um sistema electrónico de corpos celestes,
deslocados, todos, relativamente à estrutura natural, autónomos entre si. Ali
era a lua nas suas fases e as Ursas e o Cruzeiro do Sul e a estrela Arcturus:
um sistema de teclas permitia acender aquilo que se desejasse. O que vigorava
era um céu dele, era ele. Talvez pudesse morrer. De facto morreu mas não sei de
que maneira interior morreu. Nunca se sabe aquilo que basta. Talvez baste um
poema, uma coisa mínima, viva, nossa, uma coisa sub-reptícia para empunhar
diante do implacável acordo das formas exteriores. Também pode ser que nada
baste. E nesse caso tanto faz escrever um romance ou cem poemas ou apenas um
poema, ou ler ou emendar o céu astronómico ou manter-se parado no meio de um
jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja
bastante. E isto sim é interrogativo.
Herberto
Helder, in (Auto-)Entrevista, Jornal Público, 4 Dezembro 1990
Imagem:
Wassily Kandinsky, Azul Celeste, 1940.
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