O TEMPO, O SILÊNCIO, A ÉTICA E A POESIA ALQUÍMICA DE PAUL CELAN


Imagem: Anselm Kiefer, sem título. Óleo, acrílico, carvão, chumbo, ramos e gesso sobre tela. 330 x 380 cm. 2006.
                                                                 




Anselm Kiefer presta recorrentemente homenagem a Paul Celan e nela reflecte a âncora da sua obra na história. As suas obras incorporam as palavras do poeta. Ambos falam de vidas singulares suspensas num silêncio, pictórico no caso de Kiefer. Nesta gigantesca tela os ramos carbonizados que estão num plano mais próximo parecem dirigir-se a nós a rastejar à procura de uma saída. Como escapar a um destino de cabeças vergadas, parece ser a pergunta que emana do quadro. Os temas de Celan que Kiefer retrata, servem como meio para evitar a amnésia colectiva diante das brutalidades e tragédias históricas.


É sobejamente conhecido o veredicto adorniano: “A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialéctica entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um acto bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento por que se tornou impossível escrever poemas.”
                                                       


A obra de Celan concentrou a atenção dos grandes pensadores e até de músicos, desde Giorgio Agamben, Jacques Derrida, Emmanuel Lévinas, George Steiner, passando pelo compositor Michael Nyman. A sua poesia, participou, ainda, no debate filosófico da sua época, sobretudo no diálogo que estabeleceu com Martin Heidegger, em que, para o primeiro – discurtinar-se-á a ètica e não a Ontologia como filosofia primeira. Na obra de Celan, como em Lévinas, é no face-a-face humano que irrompe todo o sentido. Por conseguinte, a importância da sua obra está no testemunho poético e na vertente ética.

 Atente-se a essa força criadora:

NOS RIOS a norte do futuro
lanço a rede que tu
hesitante afundas
com sombras escritas por
pedras.

(tradução de João Barrento)


Para compreender a sua obra vale dizer que Paul Celan ficou irremediavelmente marcado pela experiência do inumano, e escreve a partir da memória dolorosa da Shoah, invalidando, assim, o veredicto de Theodor Adorno, posicionando-se como uma das vozes poéticas mais singulares do século XX  ao assumir perante - o mal radical político histórico - a responsabilidade do canto poético.

A sua poesia afirma-se às margens de si mesma no limiar do silêncio, e que, ainda assim, funda a possibilidade de dizer a esperança. Um dizer poético denso que, desenhado por penumbras, é potenciado pelo uso criativo e radical realizado no âmago da própria linguagem. Celan, radicaliza a experiência da linguagem numa demanda do Outro. A sua obra não cessa de iluminar o paradoxo que se forja no imperativo ético de exprimir o indizível sobre holocausto.

Embora saiba que usa metáforas, Celan nega que a sua poesia seja uma linguagem metafórica. A sua negação da metáfora torna o seu caminho poético mais arrasador, pois submete a língua a um processo de contracção tão forte que compromete ao limite a sua compreensão. A operação levada a cabo no seio da própria linguagem, coloca a viabilidade da sua poesia à beira do abismo.

A compreensão deste poema reside na metáfora marcante “rios a norte do futuro”. Enquanto “rios” e “norte” são substantivos espaciais, “futuro” é temporal. Como pode algo ser a “norte do futuro”? Além disso, se o futuro marca o tempo à frente, como podemos conceber qualquer coisa que possa segui-lo - um tempo além do tempo?

Celan dá-nos mais indicações sobre esta questão num outro poema traduzido por João Barrento:

SÓIS DESFIADOS
Sobre o céu cinzento e negro.
Um pensamento alto –
- como – árvore
capta o tom da luz: ainda
há canções para cantar do outro lado
dos homens.

Como no poema “Nos Rios”, com as suas sombras e pedras, “SÓIS DESFIADOS” retrata um espaço escuro. No entanto, a melancolia do primeiro verso está em contraste gritante com as imagens do que está em aberto, do que ainda pode vir. Na verdade, a imagem de “o outro lado dos homens” sugere um lugar e um tempo que estão totalmente fora das nossas experiências estas categorias de percepção, uma era de “canções” que será diferente do que a história humana até à data, isto é, o tempo que o “céu cinzento e negro” provocou.

É fundamentalmente “um lugar” e “um tempo” fora das nossas noções de espaço-tempo, que os dois poemas nos oferecem uma perspectiva esclarecedora sobre a poesia e o pensamento de Paul Celan. A capacidade da sua linguagem poética marca o tempo, isto é, marca o futuro para gerar novas metáforas e imagens, para criar novas maneiras de ver as nossas circunstâncias passadas e presentes. Este futuro, além disso, é a capacidade da literatura nos permitir “nortear” um futuro humano diferente tocando as questões de alteridade e ipseidade.

 A linguagem poética tem o poder para uma representação ambivalente das actuais condições e ao mesmo tempo produzir novos vocabulários - novos modos, mais plenos de ser-no-mundo. Com efeito, o poder da linguagem poética - mesmo quando parece totalmente focada em representar as condições sociais ou políticas terríveis - muitas vezes cria a própria linguagem com a qual podemos reformulá-las.

Esta reformulação como condição intrínseca à linguagem, este dizer poético, leva-nos a explorar a nossa capacidade de ter um futuro, apesar dos actuais acontecimentos serem de tal magnitude que parecem excluir completamente a viabilidade de um futuro. A sua poesia escreve algumas das perguntas fundamentais que se seguiram às catástrofes provocadas pelo homem. Como podemos vislumbrar um futuro da humanidade após as Guerras mundiais e o Holocausto? De que pode o futuro consistir? Qual é a relação entre vislumbrar um tal futuro e a capacidade humana de se comprometer na acção ética e política?

A noção do “outro lado dos homens” reporta-nos à perspectiva crítica de Nietzsche do seu “além-do-homem” que, defende uma forma de afirmação que não venha marcada essencialmente pelo rebaixamento do humano, mas antes, a reivindicação de uma outra ética, uma ética do "além-do-homem", o homem capaz de prometer. Esta capacidade de prometer significa a fidelidade a esse projecto de um futuro: “há canções para cantar do outro lado dos homens”, com a criação de um horizonte de sentido para a vida: “nos rios a norte do futuro”. É esse horizonte de sentido que tradicionalmente encontra a sua formulação, através de uma ética:

“lanço a rede”
que tu
hesitante afundas
com sombras escritas por
pedras.”

… e é este afundar “com sombras escritas por pedras” que retrata – a contrafigura da solidariedade operante - enquanto sujeito jurídicopolítico: a palavra morta. Sendo o dever de acolher não jurídico mas absoluto (a todo e qualquer sujeito na condição humana). A figura da pedra é um motivo recorrente nos poemas de Paul Celan. Este objecto mudo indica a (quase) impossibilidade de comunicação e, apresenta muito daquilo que a poesia de Celan cala, como escreveu em “Alquimicamente”, o testemunho do seu exílio pela prática de extermínio nazi por incineração:

“Silêncio, fundido como ouro, em
mãos
carbonizadas”

Esta combinação entre poesia e silêncio, que nasce na sombra mais negra das palavras, não é uma metáfora, nem pode, obviamente, ser entendida literalmente. Tanto mais que o nomear poético de Paul Celan parte do encontro com o real, quer dizer, os acontecimentos por ele vividos tocam questões impossíveis de simbolizar. O “verdadeiro-cicatriz, eis o resultado de minhas diversas cogitações”, afirma Celan. A essência da sua poesia está na combinação entre dois elementos que se interpenetram alquimicamente: Celan escreve e é escrito por nós leitores que vemos forçada a nossa atenção para a memória, o esquecimento e o acontecimento bruto que gera o trauma.

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