OS VALORES E O SENTIDO DO MUNDO
Se
perguntarmos aos homens de letras quais os autores que fazem parte do Olimpo da
literatura do século XX, invariavelmente, a resposta aponta para os quatro nomes
que constituem o quarteto revolucionário; Marcel Proust, Franz Kafka, James Joyce, Robert Musil e, nos círculos mais intelectuais, Hermann Broch. Hannah
Arendt, George Steiner ou Milan Kundera, são apenas alguns dos grandes críticos
que reconhecem Broch como uma figura proeminente colocada no cume desse panteão.
Com sólida formação em matemática, filosofia e psicologia - Hermann Broch nasce
poeta. Lê-lo é regressar ao mais essencial da palavra e à sua modulação.Transforma-se num autor sem biografia, como dirá em carta de 5 de
Dezembro de 1948:”partilho alguma coisa
com Kafka e Musil: nenhum de nós tem propriamente uma biografia; vivemos e
escrevemos, e é tudo”. Broch foi romancista, contista, dramaturgo, ensaísta
e crítico de primeiro plano. Em 1938, já com Hitler no poder, é preso pela canalha nazi. Com a ajuda
de James Joyce, Thomas Mann e Albert Einstein, conseguiu escapar e emigrou para
os Estados Unidos, onde recebeu a cátedra de alemão, em Yale.
Em 1945
editou um marco na literatura do século XX, “A Morte de Virgílio”, a sua
obra-prima, que contém quase uma centena de excertos das poesias de Virgílio
disseminada na narrativa. O texto é, profundo, melancólico, escrito num estilo
lírico de difícil superação em beleza. Numa dialéctica realizada de forma sistemática,
nesta monumental obra o autor recria as últimas dezoito horas de Virgílio, nas
quais cogita destruir num radical acto a Eneida, a obra da sua vida… “a literatura é apenas impaciência por parte
do conhecimento” (…)” a confissão não é nada o saber é tudo”.
Num ensaio
que lhe destinou, “O Poeta Relutante”, afirma Hannah Arendt que, Hermann Broch “estava inteiramente convencido, nos últimos
anos da sua existência, do primado do conhecimento sobre a literatura, da
ciência sobre a arte”. Refere que, “no
fim da vida, chegou a persuadir-se de que havia uma espécie de prioridade,
senão mesmo de primado, de uma teoria geral do conhecimento em relação à ciência
e à política”. E conclui,” n’”A Morte
de Virgílio”, a “Eneida” ”deve ser queimada para bem do conhecimento, sendo
esse conhecimento depois sacrificado à amizade entre Virgílio e o imperador e
às exigências políticas eminentemente práticas da época que condicionavam essa
amizade”.
Como
salienta Hannah Arendt, as implicações destes desenvolvimentos seriam, depois,
integralmente assumidas pelo pensamento ensaístico de Hermann Broch, cuja
missão extraordinária, da literatura da sua época, seria “submeter todo o estético ao poder do ético”. É numa Áustria
em declínio, nessa “metrópole do vazio
ético” que é Viena na primeira metade do século XX que Hermann Broch
concebe um Virgílio no ano 737 depois da fundação de Roma, pouco antes do
nascimento de Cristo. Ao estabelecer um paralelo entre o conceito totalitário
da Roma Imperial e o nacional-socialismo – há uma correspondência entre o
Imperador Octávio César Augusto e Hitler.
O poeta
“Virgílio” encontra-se confrontado com um conceito de valores totalitários da Roma
imperial, cujas motivações interiores nada contam: “ Perante a arte do soberano, perante a arte de estabelecer a ordem no
Estado e de firmar a paz, perante uma tal arte e uma tal missão que são
essencialmente romanas, desvanecem-se todas as outras manifestações
artísticas”. A literatura, de qualquer modo, seria inútil perante a
desumanidade dos dois regimes.
Para Hermann
Broch a literatura enquanto tal, é “fundamentalmente insuficiente”, nunca em
última instância pôs em causa no seu trabalho criador “ o absoluto primado da
ética”. Para Broch, a arte “nunca pode
ser levada à categoria de absoluto, e por conseguinte deve permanecer
cognitivamente muda”. Para ele, “a
arte pela arte” apesar das aparências aristocráticas e altivas de obras
literariamente convincentes, são na realidade o kitsch, e pertencem ao domínio
comercial, afirma, “ «negócios são
negócios», já contém em si mesma a desonestidade do especulador sem escrúpulos,
e tal como na Primeira Guerra Mundial a máxima omnipresente «a guerra é a
guerra», já a transforma numa carnificina maciça.” Como salienta George
Steiner em “Literatura Pós-História”,
para Broch, “a Arte, é um deus falso”.
Hannah Arendt ao expor a crítica dos valores de Broch conclui; “a filosofia da arte pela arte conduz, se se
tiver a coragem de desenvolver os seus princípios até às últimas consequências
lógicas, à idolatria da beleza. Se porventura a nossa conceção de belo fosse a
de uma tocha ardente, estaríamos ainda dispostos, como Nero, a incendiar corpos
humanos vivos.”
Segundo
Broch o verdadeiro poder da sedução, a força sedutora do demónio, é antes de
mais um fenómeno estético. Estético no sentido mais amplo do termo; os homens
de negócios cujo credo é “negócios são
negócios” e os estadistas que proclamam “
a guerra é a guerra”, são literatos estetizantes no “vazio de valores”. São estetas na medida em que a harmonia do seu
próprio sistema os encantam, e tornam-se assassinos porque estão a sacrificar
tudo a essa harmonia, a essa “bela” coerência. O que é absolutamente decisivo é
que para Broch o instrumento de medida que se aplica a todas as áreas de valor,
sejam elas quais forem, é a ética. Para ele, do mesmo modo que a riqueza que
pode resultar de uma actividade comercial deve ser um subproduto, um efeito
nunca visado enquanto tal, também a beleza é um subproduto para o artista, cuja
meta deve ser apenas “boa” (ética) e não “bela” (estética).
N’A Morte de
Virgílio” as divisões clássicas entre poesia, drama, ficção em prosa e
argumentação filosófica são deliberadamente eliminadas. O romance é construído por sonhos, pensamentos, imagens
e falas do próprio poeta, num complexo fluxo de consciência, desenhado num
estilo narrativo “de inviolável beleza e
vitalidade” com os dramas existenciais de Virgílio diante da agonia da
morte.
Se ele
queria destruir a sua obra-prima, tão do interesse do imperador Augusto, em
primeiro lugar - por razões de Estado -, era por que sabia que a “Eneida”,
estava longe de compor um relato fiel dos factos históricos: “Adornei Roma e o que eu fiz não vale mais
do que as estátuas do jardim do Mecenas”. Acrescenta: “Sem verdade era o poema, afastado da realidade o seu herói Eneias, um
poema sem profundidade de conhecimento, que nada tinha fixado de verdade,
porque só no conhecimento a luz e a sombra se distinguem: o poema havia ficado
pálido, sem sombras.”
Uma vez que
a verdade se vê privada de demonstração histórica, a verdade teve, a partir
daí, que se converter em conhecimento. Só então podia surgir o valor. Com
efeito, para Broch, o valor é “a verdade
que se transforma em conhecimento”. Em rigor, “só o conhecimento pode ter um objectivo”, e para Broch “esse objectivo deveria ser antes de mais
eminentemente prático (acção), quer fosse ético quer religioso ou político”.
Nesse sentido, Broch transmite-nos uma agradável mensagem de afectos: Virgílio
põe a amizade pelo imperador Octávio Augusto em primeiro lugar, e dedica-lhe a
“Eneida”.
A Morte de
Virgílio é um romance construído em quatro secções pelos quatro elementos
jónicos:
A Água – A Chegada;
O Fogo – A Descida;
A Terra – A Expectativa;
O Éter – O Regresso.
Como fez notar George Steiner, cada uma das secções é figurativa de um dos quatro andamentos de um quarteto. Com efeito, há indícios de que Broch tinha diante de si a estrutura de um quarteto de Beethoven. Em cada “andamento”, o enredo, o diálogo, a narrativa e a cadência da prosa devem reflectir o ritmo musical correspondente. Ora o “scherzo” indica que o enredo, o diálogo e a narrativa devem ser exercitadas a um ritmo acentuado; ora o “andante” faz com que o estilo de Broch abrande para longas e sinuosas frases. A terceira secção do romance tem a forma essencial do classicismo musical – baseado na alternância de um refrão e várias coplas - com uma linha melódica sustentada na alteridade em direção ao rosto humano n”a procura do conhecimento recíproco na alma do outro, no coração do outro, nas invisíveis profundidades do outro, procura da sua própria imagem no conhecimento que o outro tem do outro, tentando despertar no outro o conhecimento para se poder contemplar a si próprio numa visão constante para toda a eternidade, eterna a ponte, eterna a cadeia sobre ela lançada, eterno o encontro, eterno através de todas as modificações porque só no encontro repousa a plenitude de sentido da palavra, o cumprimento do sentido do mundo.”
A última secção
ou o último andamento, o que torna a passagem real de Virgílio para a morte é de
um paroxismo narrativo surpreendente. Para Broch, a morte é o não valor em-si,
e “só aprendemos o sentido da morte a
partir do pólo negativo, do ponto de vista da morte. O valor significa a
vitória sobre a morte, ou mais precisamente, a ilusão redentora que dissipa a
consciência da morte”. Baseado numa cosmogonia panteísta, Broch regressa ao
Verbo primordial: “o anel dos tempos e o
fim era o princípio”, na angústia infinita do saber; “o nada encheu o vazio e transformou-se em Universo”. Um estado de
espírito melancólico, de tristeza, cansaço e desilusão percorre todo o livro.
Broch acaba por ver na morte a promessa de um mundo ordenado - a suprema
libertação. Estabelece para si-mesmo um pacto com a morte como
unidade-universal: a formação de um mundo ordenado neste mundo frequentemente
caótico.
Ruy Belo
disse que dava palavras um pouco como as árvores dão frutos. Ao escrever, dava
à terra, que para ele era tudo, um pouco do que é da terra. Por conseguinte,
podemos dizer que, Broch ao escrever, dá ao homem não porque para ele o homem
fosse tudo, mas porque “o homem enquanto tal
é o problema do nosso tempo" – e por isso, dá ao homem o que é do homem.
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