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A mostrar mensagens de fevereiro, 2019

O barro humano

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                                                                          Contei um dia a breve história de uma tremenda guerra numa aldeia, desencadeada por uma suposta troca de duas galinhas de barro. No final do conto, a mulher que despoletara essa guerra, ao pretender destrocar enfim as galinhas, acaba por levar de novo a sua, porque a não distinguia da outra. Assim o motivo fútil da desordem não chegara sequer a ser um mot ivo. O homo homini lupus era-me de trágica evidência nas contendas absurdas que presenciara na infância. Mas só tarde aprendi que aldeia era o mundo. A máxima de Hobbes só se entende como a voz negativa do homem para que a outra, a positiva, também tenha a sua oportunidade e haja paz de vez em quando. O ódio e o amor são pólos de um equilíbrio difícil do homem...

Epiphania

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                                                                                                 A turma tinha lido duas peças de Shakespeare e estava a terminar a semana com o estudo dos sonetos. Os alunos estavam enervadiços e desconcertados, meio assustados com a tensão crescente entre eles e a figura curvada que os observava por detrás do atril. Sloane lera-lhes em voz alta o soneto setenta e três; os seus olhos varreram a sala e os lábios cerraram-se num sorriso desprovido de humor.  - Qual é o significado deste soneto? – perguntou abruptamente, e fez uma pausa, os seus olhos perscrutando a sala com uma descrença sinistra e quase satisfeita. – Sr. Wilbur? – Silêncio. – Sr. Schmidt? – Alguém tossiu. Sloane pousou os olh...

À ESPERA DE GODOT Variações sobre um tema II

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“TODOS NÓS NASCEMOS LOUCOS. ALGUNS MANTÊM-SE.” - Samuel Becket                                                               “Mas o que tenta o psicanalista é reconduzir ao mundo, no que se separa da reticência de Becket em relação a ele. Louco, à maneira de quem espera Godot, será aquele que se desencanta, mais tarde ou mais cedo, de reconhecimentos toscos que não estão à altura de quem se enfastia dos usos da razão tribal, que rompe com eles e sonha viajar, viaja como pode por sendas    que não existem ainda. Que loucura de que o irlandês francófono deixou a imagem no seu apocalipse vazio e sem ruído terá sido a dum rebelde ao mundo como poder sobre outrem , nas três vertentes que já os antigos Evangelhos propunham no contexto do reino apocalíptico de deus: contra o dinheiro, contra César, contra o d...

À ESPERA DE GODOT Variações sobre um tema I

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                                                            Nota: a imagem é da minha autoria (carvão sobre papel 40x50, 2016) e o modelo é um amigo meu do qual preservo o anonimato. “A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.” Michel Foucault (in, História da Loucura, Edições Perspectiva, trad. de José Teixeira Coelho, 2009). Ao contrário do que se poderia julgar, a “História da Loucura” da autoria de Michel Foucault, não é uma descrição das teorias relacionadas com o tratamento dos doentes mentais, mas uma investigação a partir das práticas de isolamento, práticas essas indissociáveis das práticas discursivas, pois foi através dos discursos que surgiu o isolamento e a punição da loucura. Através das práticas do internamento, Foucault en...

SER E TEMPO

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                                                               “Não era apenas Albertine que não passava de uma sucessão de momentos, era também eu próprio. O meu amor por ela não era simples, à curiosidade do desconhecido somara-se um desejo sensual e, a um sentimento de doçura quase familiar, ora a indiferença, ora um furioso ciúme. Eu não era um só homem, mas o desfile de um exército compósito onde havia apaixonados, indiferentes, ciumentos – ciumentos, nenhum dos quais com ciúmes da mesma mulher. E seria daí, sem dúvida, que viria um dia a cura que não me sentia capaz de desejar. Numa multidão, os elementos podem, um por um, sem darmos por isso, ser substituídos por outros, que outros eliminam ou reforçam, e de tal modo que acaba por se consumar uma transformação que não poderia conceber-se se fôssemos um.” Marce...

Da série atordoa-me que eu gosto

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                                                                     Sobre a tua cabeleira hei-de pôr, para as núpcias, uma coroa de borboletas com suas asas pintadas. Terás de volta ao pescoço flores de abóbora, em prata, e a lua que para ti noites e noites forjei. Andarás pelo povo sobre um cavalo em turquesa. Um cavalo ardente e leve, animado pelo meu fogo de amor. E a teus pés eu lançarei uma pedra quente quente: o coração onde correm milhões de gotas de sangue. Herberto Helder in O Bebedor Nocturno, “Dons do Amante, Poema Índio, Assírio & Alvim, 2013. Nota: a imagem corresponde a Gustav Klimt, “O Beijo”, e nela se vê representada um mundo que não é o nosso: um mundo salpicado de ouro sobre um manto de flores. Um mundo apaixonado de fantasia e intimidade. O momento é cristalizado pelo elemento mais ter...

MORRER AO TEU LADO

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                                                               Dos elementos mais dinamicamente surpreendentes dos Smiths era que, entre a sensualidade e a angústia, a ironia e a crítica social, costumavam colar às suas letras uma matéria rítmica e melódica de grande invenção e inovação. “There Is a Light That Never Goes Out” é de uma intensa luminosidade musical que ressoa a um tempo e que se pode condensar na seguinte fórmula: “live fast, die young, be wild, and have fun!” Se estivéssemos numa aula de literatura, e se quiséssemos arranjar igual magnitude em frémito passional, poderíamos falar em livros que influenciaram de facto a vida real, como “A Paixão do Jovem Werther”, que inspirou uma onda de suicídios na altura da sua publicação. E tudo por causa do amor. A analogia serve de ponte para a opus magnum por excelênc...

LA CRÈME DE LA CRÈME

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                                                                            “Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer- se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória.” Marcel Proust, Do lado de Swan, Em Busca do Tempo Perdido. Tradução de Pedro Tamen, Relógio D’Água Editores, 2003.

O LEGADO UNIVERSAL

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                                                       Convém sublinhar - a fim de bem sublinhar - o papel da subjectividade em Beethoven e a consequente revolução na História da Arte. Com efeito, historicamente falando, se tivessem perguntado a Bach se as suas composições reflectiam a sua individualidade e a sua criatividade, ele não teria compreendido a pergunta. Bach não se importou de compor algumas das obras sobre temas que lhe tinham sido encomendados, e a sua Arte da Fuga pretendia ser uma “técnica” da fuga e não uma expressão da sua voz pessoal. Por conseguinte, no seu tempo, os artistas produziam produtos patrocinados por quem os pagava e a sua posição não era muito diferente da dos artesãos que forneciam certo tipo de serviços. É pela mão de Beethoven que a Arte substitui a religião nas classes médias cultas da Europa e o artista ...

Despotencialização, variações sobre um tema II

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                                                         O homem sem qualidades não é pois apenas o herói livre que recusa qualquer limitação e, recusando a essência, pressente que deve também recusar a existência, substituída pela possibilidade. É antes de tudo o homem qualquer das cidades grandes, homem intercambiável, que não é nada e não parece nada, o “Fulano” quotidiano, o indivíduo que não é mais um particular mas se confunde com a verdade congelada da existência impessoal.   -Maurice Blanchot (in O livro por Vir, Relógio D´Água Editores, Outubro de 2018, prefácio de Francisco vale, trad. de Maria Regina Louro.)

Despotencialização do quotidiano

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                                                                               “Ulrich cedo compreendeu que a época em que vive, dotada de um saber imenso que nenhuma outra época antes teve, parece ser incapaz de intervir no curso da história. E a razão de tudo isto, vê-a Ulrich no facto de a realidade, hoje, só numa ínfima parte ser produzida pelos homens. Os homens já não são criativos porque se tornaram um montão de qualidades e de hábitos e porque as suas experiências de vida obedecem a um esquematismo herdado. Assim: já não são capazes de viver as suas experiências”. -Musil (in “O homem sem qualidades”, trad. João Barrento. Dom Quixote Editores.2008)

FLOR

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                                                                Imagem: Domingos Monteiro FLOR A pedra. A pedra no ar, que segui. O teu olhar, tão cego como a pedra. Nós fomos mãos, esvaziámos a treva, encontrámos a palavra, que subia do verão: flor. Flor – uma palavra de cegos. Os teus olhos e os meus olhos: vão em busca de água. Crescimento. Folha a folha acrescenta as paredes do coração. Uma palavra ainda, como esta, e os martelos rodopiam ao ar livre.   - Paul Celan (in «Sete Rosas Mais Tarde – Antologia Poética», tradução de João Barrento e Y. K. Centeno, Cotovia) Ao ler Paul Celan, não posso deixar de sentir o impacto e a força desmedida que os seus poemas me causam. É uma força gravitacional à qual não consigo escapar ileso. Mesmo que, num primeiro ol...

No teu coração incida o sol e faça irromper vida

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                                                                 “O poema, sendo como é uma forma de aparição da linguagem, é por isso de essência dialógica, o poema pode ser uma garrafa lançada ao mar, abandonada à esperança - decerto muitas vezes ténue - de poder um dia ser recolhida numa qualquer praia, talvez na praia do coração. Também neste sentido os poemas são um caminho: encaminham-se para um destino (…) para um lugar aberto, para um tu intocável…" - Paul Celan,“Texto de agradecimento do primeiro prémio recebido, em Bremen”, 1958, in: "Arte Poética - Meridiano e outros textos".Tradução de João Barrento e Vanessa Milheiro; posfácio e notas de João Barrento. Lisboa, Edições Cotovia: 1996.

Na superfície do teu corpo

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                                                                   Gustav Klimt, Serpentes d'Água II, 1907. Se algo amei, não nos afrescos e as estátuas,   Se em algo vi a harmonia oclusa do Universo,   Se em algo entrevi a mão que move os círculos atónitos dos astros,   Se assisti aos planetas e aos átomos nas moléculas, as elipses   Sem saudade dos cometas nas parábolas íntimas do sangue,   As cordilheiras numas ancas, as vagas explosivas em dois seios,   A verticalidade das florestas entre coxas, o torcer-se   Dos galhos estirados em dois braços,   E o fundo das lagunas entre lábios, e esses brilhos   No vácuo desparzidos em pupilas, Foi em ti (...)" Emily Dickinson ( in “Corpo”, Duzentos Poemas. Tradução, organização e posfácio de A...

SENTIDO INCONTIDO

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                                                                SUMINDO-SE IAM CAMADAS sucessivas de sentido. Cada uma deixou mágoa a esvair-se. Nem o ritmo de esvaimento chegava a repousar. Mas, sozinho, sem outra qualquer substância, ia, progressivo, abrindo aquela cesura de alma que apenas chegava a limbo. Depois – depois? era nada. Uma espécie de vazio independente. A palavra tinha o silêncio consigo. Fernando Echevarría, Categorias e outras Paisagens, Edições Afrontamento, Outubro de 2013. Imagem: Gustav Klint, Vida e Morte, 1916.

CORRE CORRE, AO ENGANO E AO DESENCONTRO

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                                                                              É melhor correres, é melhor correres É melhor não esperares muito tempo É melhor correres, é melhor correres É melhor correres antes que ganhes um coração                               Queria voltar mais uma vez nestas páginas aos tópicos sobre a felicidade e a forma físico-organizacional da sociedade. Quantas vezes nos envolvemos emocionalmente com um texto de uma canção e com ele estabelecemos uma relação afectiva para implementarmos ideias e, a partir daí, construirmos uma compreensão do mundo? “Vocal” dos Madrugada pode ser a casa dessa compreensão. A ironia afiada e a urgência do cortejo das estrofes iniciais, cava uma pod...