CORRE CORRE, AO ENGANO E AO DESENCONTRO
É melhor correres, é melhor correres
É melhor não esperares muito tempo
É melhor correres, é melhor correres
É melhor correres antes que ganhes um
coração
Queria voltar mais uma vez nestas páginas aos tópicos sobre a
felicidade e a forma físico-organizacional da sociedade. Quantas vezes nos envolvemos
emocionalmente com um texto de uma canção e com ele estabelecemos uma relação
afectiva para implementarmos ideias e, a partir daí, construirmos uma compreensão
do mundo? “Vocal” dos Madrugada pode ser a casa dessa compreensão. A ironia
afiada e a urgência do cortejo das estrofes iniciais, cava uma poderosa base
filosófica fazendo referência oculta a Freud, Dante e a T.S. Elliot: a visão de
uma terra de sonâmbulos e mortos-vivos, “enterrei
a minha cabeça no travesseiro por um milhão de dias.” Não fomos
propriamente silenciados e despojados da realidade por estes messias da
literatura, a ideia é de que as nossas vidas não são suficientemente reais.
Quer dizer, independentemente do ponto onde estamos, da natureza de hámster do
dia-dia, de modos de vida repetitivos e padronizados, alguém ainda acredita que
a liberdade de que usufruímos pode criar a nossa hora? “Corremos, corremos”, mas numa profecia ao contrário, “corremos, corremos”, mas à maneira de uma
fotografia: para lado nenhum.
A existência
individualizada e a velocidade da nossa vida laboral e acumulativa, vazia de
experiências comunitárias, solidárias e políticas, rouba-nos o “coração”. O nosso estilo de vida
padronizado e disciplinado… determinado pelas tecnologias e pela incessante
necessidade de consumo criada pelo capitalismo, gera em nós um sentimento
permanente de “urgência”. Freud já nos tinha alertado para o facto de
“padecermos” dessa angústia. Disso, nos deu conta em “O Mal-Estar na Civilização”.
Com efeito, nós, os “civilizados” deste mundo, vivemos marcados pelo sentimento
de abandono, de culpa e remorso, acentuado pela coerção cultural para que
sejamos enquadrados nos moldes sociais, o que gera em nós emoções de tal ordem
fortes, a que chamava emoções oceânicas. Dimensão tão vasta capaz de nos fazer
perder na procura da nossa felicidade.
A canção
“vocaliza” esta solidão e este desespero, “ainda
não chorei, eu não chorei/ E não me vou conter, não”. A letra, opera por
isso, a forma angustiada da desarticulação com realidade, a realidade que se
nos sobrepõe e nos ultrapassa. A denúncia deste mal-estar estende-se por vastos
campos: das democracias representativas que estão esgotadas; dos ditames da
economia que nos controlam; aos movimentos da ciência e da tecnologia,
auto-alimentados pelas suas descobertas e cujos resultados nem sempre são
benéficos. Desta angústia existencial emergem duas questões: o que valemos no
meio disto? A Felicidade é possível numa sociedade em que cada dia se fragmenta?
A liberdade que gozamos não é aquela defendida por Immanuel Kant, mas apenas a
liberdade negativa que consiste em não sermos impedidos de agir, ou de nos
exprimirmos sem censura. Por conseguinte, a noção que temos da “autonomia
pessoal” passou a ser sinónimo absoluto de “liberdade negativa”. Isto é: nós,
socialmente atomizados somos o novo elemento revolucionário. Aqui
chegados, resta-me dizer que “Vocal” fala para a descrença daqueles que “Não se atrevem a caminhar através da luz”
por forma a evitar a fractura e a incapacidade de se constituírem como centro
da sua liberdade e das suas decisões. No fundo,
a canção diz para nos pormos a salvo se queremos “ganhar um coração”. Cruxifiquemo-lo nas lágrimas da dor e do amor
e, talvez, algum futuro há de enfim florescer.
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