O barro humano
Contei um dia a breve história de uma tremenda guerra numa aldeia, desencadeada por uma suposta troca de duas galinhas de barro. No final do conto, a mulher que despoletara essa guerra, ao pretender destrocar enfim as galinhas, acaba por levar de novo a sua, porque a não distinguia da outra. Assim o motivo fútil da desordem não chegara sequer a ser um motivo.
O homo homini lupus era-me de trágica evidência nas contendas absurdas que presenciara na infância. Mas só tarde aprendi que aldeia era o mundo. A máxima de Hobbes só se entende como a voz negativa do homem para que a outra, a positiva, também tenha a sua oportunidade e haja paz de vez em quando.
O ódio e o amor são pólos de um equilíbrio difícil do homem e a síntese emblemática de toda a história. Mas o ódio não se assume a si mesmo para que humano se pareça e é assim o amor que pretende normalmente fundamentá-lo. Assim, num tiro que se dispare é uma ideia de justiça que se pretende dê ao gatilho.
A história do homem é a história das utopias. Mas das utopias do passado restou sempre ou quase sempre o que as redimisse de terem sido uma esperança vã. Não sei bem por onde passou então a História, se pela exacta acção do homem se pelos intervalos dela. Como não sei se o melhor não foi apenas muitas vezes o diferente e se a causa não é só a consequência, até uma casa última incognoscível. De todo o modo, eis-nos chegados ao fim do século e do milénio com a terrível evidência de que temos as mãos vazias. Nenhum século como o nosso terá tido uma maior carga de esperança – tipificada como nunca com o definitivo fim da História.
Mas quanto mais intensa é a esperança, mais violenta é a exigência de a realizar. E a desilusão mede-se pela quantidade de sangue que se derramou. Curiosamente, ou previstamente, a arte já há um século vinha dando aviso de que a História real não passava por aí – por onde julgava que se passava. Mas porque a arte fora sempre, afinal, a expressão da profunda verdade do homem, pensou-se em utilizá-la para dizer a verdade onde apenas havia erro.
Pela primeira vez na História um surto político julgou poder realizar o homem todo, em tudo quanto nele fosse um sonho ou necessidade de se realizar, incluindo a arte e até a própria religião pela sacralização de um partido. Porque através dos milénios o homem não conseguiu ainda aprender a dedicação ou o amor senão na forma de escravidão. E o melhor processo de ser escravo é divinizar o senhor. Porque a divindade dele justifica reflexamente a escravidão de quem o serve. Só depois de inventado o deus, se entende que se adore.»
Não é preciso ser de ouro o bezerro para o adorarmos – basta que o bezerro o sejamos nós. O homem está pronto para adorar seja o que for, desde que instaure isso tudo em divindade, ou seja, a uma distância infinita de si. Não apenas porque a vida pesa muito, mas porque pesa ainda mais sermos senhores de nós. E no entanto, sermos senhores de nós próprios foi a razão última de toda a luta do homem pelos séculos.
Mas ao fim dos milénios dessa luta, encontrou-se em face de uma liberdade de vazia. Porque a questão radical que mais do que nunca hoje se põe é a de dar um sentido à vida. E a única resposta que podemos encontrar é a de que a vida é já resposta bastante. A vida justifica-se por si, ela é o valor máximo de que podemos dispor e homem encontra-se assim no limiar de uma aprendizagem de si mesmo. Certo pensar moderno admitiu que a “morte de Deus” – se disso ainda se pode falar – arrastava consigo a “morte do homem”. Como se não fosse exactamente ao contrário. Pressupostamente o homem deixava de ser “o rei da criação”, com toda a natureza ordenada em torno de si.
Mas ele perdia esse lugar privilegiado como a Terra o perdera depois de Copérnico, se a natureza deixava de girar à sua volta, também ele deixava de ser um súbdito de quem a isso o promovera. Mas a aprendizagem de si próprio é difícil para o homem e é dessa dificuldade que nos dão conta, como talvez o não suspeitemos, as lutas que sabemos, desesperadas e vãs.
A morte das ideologias, que é o grande acontecimento do nosso tempo, tem a dupla face do abandono do homem a si próprio e da grandeza bastante que em si próprio tem de acabar. A “era clássica da guerra” que Nietzsche profetizou para o nosso tempo, acaso não poderemos admitir que é a condenação do homem à paz? Sempre a guerra foi julgada uma fatalidade e um Freud procurou interiorizar-nos também essa ideia.
Mas conhecer uma fatalidade é já talvez um pouco anulá-la. Porque se tenta entendê-la para lhe destruir o ininteligível e se objectiva para ela estar um pouco abaixo de nós. Em nome de quê se há-de fazer uma guerra, se não houver esse “nome”? Que ideologia pode dar ao gatilho, se não houver essa ideologia? Ou em nome de quê uma guerra, se esse for o nome da vida e da paz?
A morte das ideologias só é uma tragédia para quem não aprendeu que a ideologia é ele próprio, ou seja o próprio homem. Escrevi algures que numa carroça quem tem menos problemas é o cavalo. Mas precisamente por isso foi a sorte do cavalo que normalmente e no fundo o homem para si pretendeu. Alguém que tome conta de nós. Alguém, alguma coisa que tome sobre si o que é o peso do nosso excesso.
Eis que pela primeira vez o homem tem de tomar conta de si. É difícil, bem o sabemos. Porque a vida pesa imenso. E o mais pesado nela é saber-se e aguentar-se que ela tenha em si um limite, que a sua justificação é não ter justificação. Olhar a vida, a Terra e os astros e saber apenas que são, ou seja, que estão aí sem mais. Mas acaso o não ter justificação lhe não justifica um valor maior?
Porque tal valor está todo inteiro nisso, sem nada para lá em que se apoie e justifique. A vida não se excede a si própria e tudo o que está para além disso é uma ridícula galinha de barro. Que a vida se não justifique será um absurdo. Mas é mais absurdo por isso mesmo que os homens se exterminem por um pedaço de argila.
- Vergílio Ferreira,
( in, O espaço do invisível, 1998. Bertrand Editora).
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