O LEGADO UNIVERSAL


                                                    


 Convém sublinhar - a fim de bem sublinhar - o papel da subjectividade em Beethoven e a consequente revolução na História da Arte. Com efeito, historicamente falando, se tivessem perguntado a Bach se as suas composições reflectiam a sua individualidade e a sua criatividade, ele não teria compreendido a pergunta. Bach não se importou de compor algumas das obras sobre temas que lhe tinham sido encomendados, e a sua Arte da Fuga pretendia ser uma “técnica” da fuga e não uma expressão da sua voz pessoal. Por conseguinte, no seu tempo, os artistas produziam produtos patrocinados por quem os pagava e a sua posição não era muito diferente da dos artesãos que forneciam certo tipo de serviços. É pela mão de Beethoven que a Arte substitui a religião nas classes médias cultas da Europa e o artista substitui Deus. É no período de transição entre o Classicismo e o Romantismo, na segunda metade do século XVIII, que nasce o conceito moderno de génio. A obsessão do Romantismo era o processo de criação artística. Nada parecia mais mágico, mais especial e quase santificado do que a criação de uma obra de Arte grandiosa. Imputou-se ao Artista a qualidade que, durante milénios de teologia, fora imputada a Deus: a capacidade de criar algo a partir do nada, o milagre da criação ex nihilo.

De facto, em Haydn, com quem Beethoven teve algumas aulas de piano, e em Mozart, a pressão da subjectividade não fazia estalar as formas, ou só raramente se aproximavam da graciosa melancolia das composições de Beethoven e, ainda assim, em Haydn nunca esta graciosidade perdia uma solene compostura palaciana. Com Beethoven não é assim: a forma herdada ou aprendida com os seus mestres nunca é suficiente para dizer o que tem a dizer. Há no seu pensamento musical uma necessidade intrínseca de dramatismo expressivo, uma componente de paixão, de tal modo que a dialéctica musical  - se perturba profundamente - na própria raiz da criação.

E é este impulso que vem desvirtuar os dados, quer dizer, os recursos e os processos recebidos através da aprendizagem enquanto tais, passam a estar ao serviço de outro tipo de tensões e de uma subjectividade que se sente plenamente livre.
                                                        


Diz T. W. Adorno, num ensaio conhecido sobe o estilo de maturidade em Beethoven, que, “na História da Arte, as obras tardias representam as catástrofes”. Por isso, “as regras e as convenções aprendidas seriam aplicadas mais descarnada, desgarrada e deslocadamente, ante a pressão crescente da morte cuja aproximação é sentida pelo artista quando este se atira à criação das últimas obras, e lhe é mais importante exprimir isso, nas suas asperezas e fraturas, do que a correcção do fazer, dando largas a uma subjectividade agonizante como substância da obra tardia”. Eu, quando escuto Beethoven, lembro-me com frequência disto, mas não iria somente por aí, nem me confinaria apenas à aproximação com a morte para interpretar uma série de rupturas beethovianas, mais ou menos tardias com a linguagem musical anterior a ele. Fico sempre com a sensação de que Beethoven utilizou sempre, ou quase sempre, uma herança mozartiana e haydniana, reelaborando-a para um outro tipo de função expressiva da sua música e que se torna necessário confrontar o artista com o seu tempo para compreender o processo.

A subjectividade de Beethoven tem em si muito do sentimento da iminência do catastrófico, da revolta contra o destino, da ansiedade apaixonada, da expectativa luminosa de uma solução conciliadora e lenitiva, da frustração vivida, e que, percorre esta gama em todas as direcções.

Este entrechocar das oposições, tanto da materialidade sonora como as decorrentes destes sentimentos, ganha assim uma essência que ultrapassa o puro fenómeno musical. E, a esta dimensão, à falta de termo melhor, pode chamar-se literária.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Reprodução Proibida

MORRER AO TEU LADO

A linguagem da transcendência