O LEGADO UNIVERSAL
De facto, em Haydn, com quem Beethoven teve algumas aulas de
piano, e em Mozart, a pressão da subjectividade não fazia estalar as formas, ou
só raramente se aproximavam da graciosa melancolia das composições de Beethoven
e, ainda assim, em Haydn nunca esta graciosidade perdia uma solene compostura
palaciana. Com Beethoven não é assim: a forma herdada ou aprendida com os seus
mestres nunca é suficiente para dizer o que tem a dizer. Há no seu pensamento
musical uma necessidade intrínseca de dramatismo expressivo, uma componente de
paixão, de tal modo que a dialéctica musical
- se perturba profundamente - na própria raiz da criação.
E é este impulso que vem desvirtuar os dados, quer dizer, os
recursos e os processos recebidos através da aprendizagem enquanto tais, passam
a estar ao serviço de outro tipo de tensões e de uma subjectividade que se
sente plenamente livre.
Diz T. W. Adorno, num ensaio conhecido sobe o estilo de
maturidade em Beethoven, que, “na História da Arte, as obras tardias
representam as catástrofes”. Por isso, “as regras e as convenções aprendidas
seriam aplicadas mais descarnada, desgarrada e deslocadamente, ante a pressão
crescente da morte cuja aproximação é sentida pelo artista quando este se atira
à criação das últimas obras, e lhe é mais importante exprimir isso, nas suas
asperezas e fraturas, do que a correcção do fazer, dando largas a uma subjectividade
agonizante como substância da obra tardia”. Eu, quando escuto Beethoven,
lembro-me com frequência disto, mas não iria somente por aí, nem me confinaria
apenas à aproximação com a morte para interpretar uma série de rupturas
beethovianas, mais ou menos tardias com a linguagem musical anterior a ele.
Fico sempre com a sensação de que Beethoven utilizou sempre, ou quase sempre,
uma herança mozartiana e haydniana, reelaborando-a para um outro tipo de função
expressiva da sua música e que se torna necessário confrontar o artista com o
seu tempo para compreender o processo.
A subjectividade de Beethoven tem em si muito do sentimento
da iminência do catastrófico, da revolta contra o destino, da ansiedade
apaixonada, da expectativa luminosa de uma solução conciliadora e lenitiva, da
frustração vivida, e que, percorre esta gama em todas as direcções.
Este entrechocar das oposições, tanto da materialidade sonora
como as decorrentes destes sentimentos, ganha assim uma essência que ultrapassa
o puro fenómeno musical. E, a esta dimensão, à falta de termo melhor, pode
chamar-se literária.
Comentários
Enviar um comentário