FLOR


                                                               
Imagem: Domingos Monteiro

FLOR

A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.

Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.

Flor – uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.

Crescimento.
Folha a folha acrescenta
as paredes do coração.

Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.

 - Paul Celan

(in «Sete Rosas Mais Tarde – Antologia Poética», tradução de João Barrento e Y. K. Centeno, Cotovia)

Ao ler Paul Celan, não posso deixar de sentir o impacto e a força desmedida que os seus poemas me causam. É uma força gravitacional à qual não consigo escapar ileso. Mesmo que, num primeiro olhar, tenha dificuldade em aceder à interpretação de um poema, dá para pressentir de imediato a gravidade e o pasmo apocalíptico. E é tão radicalmente outro, que pela sua força e intransigência com os “estados-limite” da linguagem (inseparáveis dos vividos), escapa a todos os códigos e compêndios.

O que Paul Celan vislumbrou não sabemos; só conseguimos ler na face horrorizada dos seus poemas quem tudo perdeu, excepto a fala. Mas as palavras não se desvinculam de quem as profere e das circunstâncias que as revelam. O discurso celaniano não tem modo de escapar ao desastre do século XX, o século de todas as mutilações, até da linguagem. O horror da experiência bruta de um real que está sempre para além das palavras, da sua indizibilidade. Daqui decorre inatingibilidade do que Celan tem a dizer, ou do que seja possível, sequer, comungar. Percebemos então que a linguagem se engasga, balbucia, se petrifica. Daí a reiteração da palavra “pedra” na sua obra; o elemento mudo, ou a imanência do próprio não-senso e a impotência da linguagem de dizer o inominável. É evidente então a desidealização da linguagem em Celan, que se traduz na sua rarefação e fragmentação.  

No poema “Flor” há um áspero pendor de pedra. Tematicamente descreve um movimento da pedra dos olhos da escuridão para o verão. Enquanto singularidade, “Flor” denuncia o seu isolamento, mas, por isso, mantém a memória do todo ao qual pertencia:.. “Nós fomos/ mãos, esvaziámos a treva, encontrámos/a palavra, que subia do verão:/flor. Este enunciado, embora permanecendo ligado às circunstâncias de um passado e ao impacto que tem no presente, é, em última análise, libertador de potencialidades que permanecem e continuarão ainda por realizar…“Uma palavra ainda, como esta” (flor). As flores são como as palavras e vice-versa, e esta indistinção entre língua e natureza, não é senão a utopia que está ali presente e que não espera senão uma palavra libertadora para “os martelos rodopiarem ao ar livre.”





Comentários

  1. Esta flor rodopia na minha cabeça...

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    Respostas
    1. “Flor de cativa cor que vi um dia”.
      Desde então, Tu, Tu é que giras em volta da minha cabeça;
      rodopias e levas-me com cada uma das tuas pétalas
      para uma vida afinal de flor.
      Sorris docemente no teu desbrochar
      por me veres: Flor de olhos meus
      por serem teus.

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