SER E TEMPO


                                                              


“Não era apenas Albertine que não passava de uma sucessão de momentos, era também eu próprio. O meu amor por ela não era simples, à curiosidade do desconhecido somara-se um desejo sensual e, a um sentimento de doçura quase familiar, ora a indiferença, ora um furioso ciúme. Eu não era um só homem, mas o desfile de um exército compósito onde havia apaixonados, indiferentes, ciumentos – ciumentos, nenhum dos quais com ciúmes da mesma mulher. E seria daí, sem dúvida, que viria um dia a cura que não me sentia capaz de desejar. Numa multidão, os elementos podem, um por um, sem darmos por isso, ser substituídos por outros, que outros eliminam ou reforçam, e de tal modo que acaba por se consumar uma transformação que não poderia conceber-se se fôssemos um.”

Marcel Proust
( in, Em Busca do Tempo Perdido, A Fugitiva, trad. Pedro Tamen, p. 76. Relógio D’Água Editores, 2004.

Na monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” Marcel Proust apresenta quatro temas nucleares ao longo de toda a extensão dos seus sete volumes, a saber: o tempo, o amor, o ciúme e a ontologia. No volume “A Prisioneira”, o narrador que também é o enamorado de Albertine, aprisiona-a na tentativa de fazer surgir a sua “essência”. Como está implícito no texto de Proust, os seres humanos não têm uma natureza, uma essência, uma substancialidade da qual possamos conhecer de forma fixa e definitiva, pelo contrário, nós somos uma sequência de “eus” sempre novos que se transformam segundo o Tempo. Por isso, para o narrador, a única saída para possuir a sua amada seria fazê-la “Prisioneira”. Isto é: ao restringir os múltiplos "eus" no tempo e no espaço, o narrador, pretende, obter pela força uma essência única de Albertine, um ser que dure, que seja o mesmo, inalterado, pelo curso do tempo.

 Os filósofos de formação cristã, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes e Leibniz, estabeleceram a noção da fixidez, isto é, a ideia de que a natureza ou essência humana tinha sido criada por Deus. Ideia oposta é expressa por Jean Paul Sartre: é ao homem que cabe escolher e definir a sua própria pessoa. O homem existe e só depois é que ele próprio escolhe a sua essência. Heidegger teve o mérito de reencontrar a unidade do ser(-no-mundo) a partir da sua simultaneidade, definiu o homem a partir da sua transcendência, da expressão dual da sua animalidade e racionalidade, da sua temporalidade, da sua abertura relativamente ao ser, em suma, a partir da linguagem, do pensamento-palavra.

A fim de estabelecer a relação entre Ser e Tempo, Proust utiliza também a ideia de simultaneidade. Quer dizer, nós não atravessamos o tempo de um modo fixo, mas, diverso, estar no tempo é ser/estar simultaneamente espalhado por diversos pontos do espaço-tempo. O tempo é uma sucessão de momentos que nascem e morrem, únicos e irrepetíveis, mas em cada “momento em que esse novo eu se forma” (p. 101) nenhum deles representa a “essência do ser. Somos seres de uma tragéctória de momentos cuja visão completa só pode ser definida no seu fim. Isto impede que haja um conhecimento completo e acabado sobre nós mesmos e, por conseguinte, que haja a posse completa de qualquer ser que desejamos.

Como Proust refere:

“Imaginamos que ele tem por objecto uma pessoa que pode estar deitada diante dos nossos olhos, encerrada num corpo. Mas, infelizmente, ele é a extensão daquela pessoa a todos os pontos do espaço e do tempo que ela ocupou e ocupará. Se não possuirmos o seu contacto com um certo lugar, com uma certa hora, não o possuímos”. (Proust, A Prisioneira. Tradução de Pedro Tamen, Relógio D’Água Editores, 2004, p. 94)


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