À ESPERA DE GODOT Variações sobre um tema I
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Nota: a imagem é da minha autoria (carvão sobre papel 40x50, 2016) e o modelo é um amigo meu do qual preservo o anonimato. |
“A psicologia nunca poderá dizer a
verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.”
Michel
Foucault
(in,
História da Loucura, Edições Perspectiva, trad. de José Teixeira Coelho, 2009).
Ao contrário
do que se poderia julgar, a “História da Loucura” da autoria de Michel Foucault,
não é uma descrição das teorias relacionadas com o tratamento dos doentes
mentais, mas uma investigação a partir das práticas de isolamento, práticas
essas indissociáveis das práticas discursivas, pois foi através dos discursos
que surgiu o isolamento e a punição da loucura.
Através das
práticas do internamento, Foucault encontrou as ilusões da psiquiatria e as mitificações
da própria ciência moderna, e fez uma “genealogia” da loucura com um novo modo
de analisar o “louco”, não por uma via médica neurológica ou psicológica, mas
através de uma perspectiva em que procurou a raiz da patologia mental na
história das relações humanas. Para isso, fez uma análise das modificações dos
discursos sobre loucura através do tempo. Dá-se conta de que o conceito de loucura
já teve inúmeras interpretações, mas foi no século XVII que sofreu uma grande
transformação:
1ª - Durante todo o decorrer da história, pouca importância foi dada à questão
do “louco”.
2º - A
partir da Idade Média, o louco é visto simplesmente como um erro, uma falha da
razão.
3ª – A
partir do século XVII, com o advento da Idade Moderna, surgiu um novo ideal que
consistiu na exaltação da razão. É a partir deste ideal de racionalidade, que o
louco se tornou um símbolo da contradição da razão, de modo que, a partir
daqui, já não será tratado apenas como um mero erro, mas também, como uma
ameaça à razão.
4ª - No
início da contemporaneidade, novas ideias, teorias e instituições, vieram reforçar
este discurso de modo que o louco deixa de ser um problema para a sociedade, para
passar a ser um problema “controlado” pela ciência. Quando surgiu a Psiquiatria
e as mitificações da ciência, através de discursos que a legitimaram como
doença, a loucura ganhou casa e senhorios de bata branca.
Desde aí, estes
discursos foram aceites por uma pluralidade de receptores que se tornaram eles
mesmos emissores. É um engano pensar que o problema recairia apenas num ideal
cruel que dominaria e monopolizaria o discurso da razão, não, o problema também
está numa sociedade que exclui e deporta não só os loucos, mas todo e qualquer
indivíduo que ameaçar a sua suposta tranquilidade. Assim, a loucura passa a ser
criminosa, perigosa e talvez contagiosa.
Foucault ao trazer para luz o discurso sobre a
loucura durante os séculos XV a XIX como formas de poder, isto é, como formas
de isolamento e punição, demostrou que tanto o saber médico, quanto o
internamento psiquiátrico, tornaram-se nalguns dos instrumentos dos poderes
institucionais da época.
Consequentemente,
este saber médico foi o grande responsável por estabelecer a fronteira entre a
racionalidade e a loucura sem ao menos ter um total conhecimento do que
realmente ela é. A loucura, entretanto, começou a ser vista pelo mundo
psiquiátrico como a ameaça de uma “doença” à sociedade. E, como qualquer
doença, deve-se fazer existir uma cura.
Durante o
século XVIII, o fenómeno de exclusão para com os loucos tornou-se de facto mais
evidente com os internamentos. Foram os hospícios que se transformaram em fins
terapêuticos e penitenciários. Com efeito, pode-se observar no final da Idade
Média quando os depósitos de leprosos já não recebiam mais doentes, surgiria um
novo problema, uma nova forma de substituir os internatos para enchê-los
novamente de “doentes”; este problema seria a loucura. A partir desta noção,
Foucault afirma que a medicina demorar-se-ia a apropriar da Loucura e
utilizaria medidas talvez pouco científicas, isto é, com alguns métodos de
punição. A esse respeito, Foucault constata:
“É sob a influência do modo de
internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, que a doença venérea se
isolou, numa certa medida, do seu contexto médico e se integrou, ao lado da
Loucura, num espaço moral de exclusão. De facto, a verdadeira herança da lepra
não é aí que deve ser procurada, mas sim num fenómeno bastante complexo, do
qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenómeno é a Loucura.”
(História da
Loucura, pág. 8, 2005. Perspectiva Editora)
Num primeiro momento, a loucura foi “tratada”
sobretudo na Idade Moderna, com exclusão:
“os loucos foram colocados em navios, a Nau dos Loucos”, e lançados ao mar “
(Foucault, pág. 27). Porém, após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser
apenas um erro ou ilusão para se tornar numa ameaça, opta-se pelo internamento,
uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação não é talvez com
a perturbação da mente do louco, mas sim, com a perturbação que este possa
causar com o seu comportamento.
A partir do
século XIX, a Psiquiatria assume o controlo definitivo do discurso sobre a
loucura e, com as promessas de “cura”, justifica assim as formas de asilo:
1º -
Assegurar a segurança pessoal do louco e da sua família;
2º -
Submetê-lo à força a um regime médico;
4º -
Impor-lhe novos hábitos intelectuais e morais.
Deste modo,
denota-se que estas justificações estão imersas num discurso de poder, quer
dizer, um poder institucional, onde se construiu um saber acerca da loucura com
total domínio e controlo da medicina.
Este
discurso sanitário e de controlo da loucura aparece vicioso ao longo da História:
a razão vai ter medo desta figura alienada como uma ameaça à racionalidade. À
sociedade, restará defender-se, tratando os loucos como bestas e isolando-os
para que não promovam a desordem. Quem tem uma atitude diferente do padrão,
tendo valores opostos ao da maioria, também é catalogado como “doente” mental.
Percebe-se assim que, dependendo do olhar com que se observa, a loucura pode
estar presente em qualquer situação, da mais corriqueira à mais imprevista.
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