Epiphania


                                               

                                               


A turma tinha lido duas peças de Shakespeare e estava a terminar a semana com o estudo dos sonetos. Os alunos estavam enervadiços e desconcertados, meio assustados com a tensão crescente entre eles e a figura curvada que os observava por detrás do atril. Sloane lera-lhes em voz alta o soneto setenta e três; os seus olhos varreram a sala e os lábios cerraram-se num sorriso desprovido de humor. 

- Qual é o significado deste soneto? – perguntou abruptamente, e fez uma pausa, os seus olhos perscrutando a sala com uma descrença sinistra e quase satisfeita. – Sr. Wilbur? – Silêncio. – Sr. Schmidt? – Alguém tossiu. Sloane pousou os olhos escuros e brilhantes em Stoner. – Sr. Stoner, qual é o significado deste soneto?
Stoner engoliu em seco e tentou abrir a boca.

- É um soneto, Sr. Stoner – disse Sloane secamente -, um poema composto por catorze versos, de acordo com um determinado padrão que o senhor terá certamente decorado. Foi escrito em língua inglesa, que, creio eu, o senhor fala há já alguns anos. O autor é William Shakespeare, um poeta que já morreu, mas que, não obstante, ocupa uma posição de uma certa importância na mente de umas quantas pessoas. – Olhou para Stoner um instante e, depois, os seus olhos perderam a expressão, fixando-se obstinadamente num ponto para lá da turma. Sem olhar para o livro, declamou o poema outra vez; e a sua voz tornou-se mais grave e suave, como se as palavras e os sons e a cadência se tivessem transformado, por instante, nele próprio:

Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre a poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é cinza da sua mocidade.

Eis o que torna o amor mais forte:
Amar quem está tão próximo da morte.

                                                         
                

Num momento de silêncio, alguém pigarreou. Sloane repetiu os versos, numa voz que se tornou de novo a sua, inexpressiva:

«Eis o que torna o amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.»

Os olhos de Sloane regressaram a William Stoner e, secamente, disse: 
- O Sr. Shakespeare está a falar consigo a uma distância de trezentos anos, Sr. Stoner. Ouve-o?


 

( John William, in Stoner, D. Quixote, trad. Tânia Ganho, 20014. Tradução do soneto por Carlos de Oliveira, Sonetos de Shakespeare Reescritos em Português, Editorial Caminho).
                                                    

Nota: a imagem é da minha autoria e tem como título, Stoner (pastel, 70x50, 2016).   

    

Notas à margem: quando sabemos que tudo muda?

Quando pressentimos algo sem entender muito bem do que se trata. Pode ser um poema, um quadro, ou uma música. Aquela sensação de sairmos de nós mesmos, atónitos e encantados, como quando saímos de uma sala escura directos ao sol do meio-dia: cegamos com a claridade, mas certos de que saímos da escuridão.                                               

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