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A mostrar mensagens de dezembro, 2018

O Ruído do Tempo

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“Ser russo era ser pessimista; ser soviético era ser optimista. Por isso é que as palavras «Rússia Soviética» eram um paradoxo. O Poder nunca entendera isso. Achava que, se matasse suficiente população e desse à restante uma dieta de propaganda e terror, daí resultaria o optimismo. Mas onde estava a lógica disto? Também lhe tinham dito sempre, por várias formas e palavras, através de burocratas musicais e editoriais de jornais, que o que queriam era «um Chostakovich optimista». Outro paradoxo.” Julian Barnes, in O Ruído do Tempo. Tradução de Helena Cardoso, Quetzal Editores, 2016.                                                                              Da esquerda para direita:   Prokofiev, Chostakovich   e Khachaturien.      ...

Esse vício ainda impune

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                                                         “De cada vez que, a propósito de livros, se começa a dramatizar, fico com brotoeja. O Amor pelos livros, o Ódio aos livros, a Fúria da leitura… Palavra! Quando penso em livros, nunca vejo fogueiras, vejo, sim, um rapazinho sentado ao fundo de um jardim, com um livro em cima dos joelhos. Está ali e não está; chamam por ele, é a família, o tio que acabou de chegar, a tia que se vai embora. “Vem despedir-te!”; “Vem dizer bom-dia!” Ir ou não ir? O livro ou a família? As palavras ou a tribo? Optar pelo vício (não punido) ou pela virtude (recompensada)? Quando Larbaud emprega a expressão «vício impune», aquilo que me intriga é o adjectivo. Impune, realmente? Haverá então uma espécie de impunidade para a leitura? Pois é verdade. Um privilégio de clandestinidade que permite, afinal, pros...

A Reprodução Proibida

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                                                     A Reprodução Proibida, René Magritte, 1937. “Eu é um outro”, escreveu Rimbaud numa das suas mais célebres frases. A proposição pode ser interpretada no sentido (duplo) Heideggeriano. Quer dizer, num primeiro tempo, a linguagem surge-nos enquanto sistema ou natureza autónoma que interpela o homem; num segundo, como perda da autenticidade (ou decadência) em que passamos a um “nós” totalitário como característica da sociedade de massas. Porém, Magritte ao proibir a auto reprodução, proclama que não há existência de um “eu” que não se subtraia a um “tu”, para tal, questiona os limites da reprodução nesta era do vazio , mostrando um homem em frente a um espelho, onde o reflexo não é a imagem do seu rosto, mas das suas costas: “o eu é detestável”, afirmaria igualmente Rimbaud. Em “Reprodução P...

ENSAIO SOBRE O AFRONTAMENTO

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                                                            Willem de Kooning, Excavasion, 1950, Instituto de Arte de Chicago.         O Velho mercenário está a mancar connosco, diz Poussin voltando para o pé do pretenso quadro. Apenas vejo cores confusamente empastadas e contidas por um nunca mais acabar de linhas bizarras, que formam uma muralha de pintura… - Há uma mulher lá dentro!, exclamou Pobus.                                               Balzac                      ...

o milagre

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Trabalhar com uma forma de arte não significa mandriar como uma ténia de barriga cheia, nem justifica grandeza ou ganância, nem seriedade a toda a hora, creio antes que é um apelo aos melhores homens nos seus melhores momentos, e quando eles morrem e outra coisa não morre, assistimos ao milagre da imortalidade: homens que chegaram homens partiram como deuses – deuses que sabemos que aqui estiveram, deuses que agora nos permitem continuar quando tudo o mais nos diz para parar. Charles Bukowski, Os cães ladram facas. Alfaguara Editores, tradução de Rosalina Marshall. Selecção, Organização e Prefácio de Valério Romão. 2018.

O Homem Armado – Missa pela Paz

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                                 “O Homem Armado – Missa pela Paz”, de Karl Jenkins, é tão relevante para os nossos tempos, sombrios e, por vezes, tempos que nos confrontam com declarações alarmantes (como as de Vladimir Putin sobre o colapso do sistema internacional de contenção nuclear), quanto o foi na altura em que este oratório foi composto para as vítimas da guerra do Kosovo em 1999. É um texto renascentista francês chamado l’homme armé, que nos diz basicamente que o homem armado deve ser temido. Jenkins construiu esta peça não tanto baseado na ideia da crescente ascendência da sociedade para o conflito, mas na perspectiva da paz. Em mais do que uma língua, do latim ao francês, passando pelo inglês, Jenkins foi capaz de capturar a mistura de sentimentos de horror, assim como os de alegria, não os de vitória, mas os de regresso a casa.  ...

Questões do coração

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                                                      Estética e cronologicamente, Robert Schumann situa-se entre Beethoven e Wagner, entre a obra cosmopolita de um e a exaltação germânica do outro, e foi entre o período Romântico o compositor que mais intimamente privou com a literatura. Praticamente nascido dentro da livraria do pai, teve à sua disposição desde tenra idade o melhor da literatura da época. Época em que as bases estéticas assentavam no sonho, na fantasia e no sentimento, como reacção e oposição à razão Iluminista. Influenciado por Rousseau, cuja filosofia recaía sobre “as questões do coração” e não sobre as da razão, como era moda, coube a Schumann, dedicar-se às nuances da melancolia.                                         ...
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Como Orfeu, toco a morte nas cordas da vida e à beleza do mundo e dos teus olhos que regem o céu só sei dizer trevas. Não te esqueças que também tu, subitamente, naquela manhã, quando o teu leito estava ainda húmido de orvalho e o cravo dormia no teu coração, viste o rio negro passar por ti. Com a corda do silêncio tensa sobre a onda de sangue, dedilhei o teu coração vibrante. A tua madeixa transformou-se na cabeleira de sombras da noite, os flocos negros da escuridão nevavam sobre o teu rosto. E eu não te pertenço. Ambos nos lamentamos agora. Mas, como Orfeu, sei a vida ao lado da morte, e revejo-me no azul dos teus olhos fechados para sempre. Ingeborg Bachmann, O tempo Aprazado. Selecção, tradução e introdução de João Barrento e Judite Berkemeier.  Assírio & Alvim Editores, 1992.

A cor do canto

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                                                   Não seria necessário recuarmos ao longínquo (e tão próximo) Beethoven para nos darmos conta de que “a procura do sentido” implica a desagregação dos múltiplos discursos da arte. Bastar-me-ia mencionar a tutelar Nina Simone. Não me refiro às “dissonâncias” onde estas encontram a sua solução no mundo idealizado da música. Não é necessário procurar algo de tão rebuscado; estou a falar de algo muito mais simples - como o timbre. Repare-se na voz desta mulher: pouco convidativa; andrógina; sombria; rouca; áspera. No entanto, são estas imperfeições que lhe conferem poder e sedução. Assim como a poesia é um desvio à linguagem, a voz de Nina Simone é um desvio tímbrico àquilo a que estamos habituados a ...