Esse vício ainda impune

                                                        



“De cada vez que, a propósito de livros, se começa a dramatizar, fico com brotoeja. O Amor pelos livros, o Ódio aos livros, a Fúria da leitura… Palavra! Quando penso em livros, nunca vejo fogueiras, vejo, sim, um rapazinho sentado ao fundo de um jardim, com um livro em cima dos joelhos. Está ali e não está; chamam por ele, é a família, o tio que acabou de chegar, a tia que se vai embora. “Vem despedir-te!”; “Vem dizer bom-dia!” Ir ou não ir? O livro ou a família? As palavras ou a tribo? Optar pelo vício (não punido) ou pela virtude (recompensada)? Quando Larbaud emprega a expressão «vício impune», aquilo que me intriga é o adjectivo. Impune, realmente? Haverá então uma espécie de impunidade para a leitura? Pois é verdade. Um privilégio de clandestinidade que permite, afinal, prosseguir as operações com toda a tranquilidade. O tio chegou, a família está sentada em volta da mesa, fala-se da situação e o rapazinho que está no fundo do jardim finge que está a prestar atenção. Mas dispõe de um silêncio só seu, tem assuntos apenas seus, como a cavalgada invisível de Miguel Strogoff através das estepes, tudo isso no meio da confusão dos jarros de vinho, dos guardanapos, das vozes e das gargalhadas. Obedeceu ao chamamento, uma simples mudança de lugar, mas continua a desobedecer pensando noutra coisa. À mesa não se lê? Não faz mal, o livro continua a ler-se na cabeça dele. Só mais um bocadinho de paciência e lá estará o quarto e o silêncio da luz coada pelas persianas. É o magnífico começo de Em Busca do tempo Perdido, com o paraíso de Combray e das «belas tardes» de leitura à sombra do castanheiro, no refúgio da guarita onde se opera a metamorfose, um tempo outro a nascer dentro do tempo, um mundo outro a surgir do nada. Os sinos da igreja de Méséglise batem as horas, mas o narrador já não os ouve - «Algo que tivera lugar, não tivera lugar em mim; o interesse da leitura, mágico como um sono profundo, tinha confundido os meus ouvidos alucinados e apagado o sino de ouro na superfície azulada do silêncio».”

Michel Crepú, “Esse vício ainda impune”, Edições  Gradiva, tradução Margarida Sérvulo Correia, 2012.


Imagem: secção George Steiner cá de casa.

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