O dever da memória
W.G. Sebald é um daqueles gigantes da literatura responsável por produzir aquele que é considerado por muitos como um dos maiores romances do início do século XXI: Austerlitz.
Sebald nasceu na Alemanha (1944), mas viveu a maior parte da sua vida em Inglaterra, onde ensinou literatura austríaca nalgumas universidades, país de onde viria a morrer inesperadamente em 2001, após sofrer um ataque do coração enquanto conduzia o seu carro.
O título não se refere à conhecida estação de comboios em Paris ou a uma das batalhas de Napoleão, e sim a um homem que tem a sua vida assombrada pela catástrofe. Para que pudesse ser salvo dos alemães, em 1939, com apenas cinco anos de idade, Jacques Austerlitz deixa Praga - e é enviado com outras crianças judias para o Reino Unido – onde seria adoptado por um pastor calvinista e a sua mulher “numa espécie de cativeiro”(p.46).
O seu nome verdadeiro apenas lhe é revelado aos quinze anos após a morte do casal adoptivo, e a partir desta palavra, que lhe soa totalmente estranha, o imenso e “infeliz” vazio da sua história surge-lhe de modo irreparável. “Ninguém sabe explicar ao certo o que se passa em nós quando se abrem as portas que escondem os terrores da nossa infância” (p.29).
Sem qualquer pingo de sentimentalismo, Sebald vai-nos contando
a trama vital de Jacques Austerlitz, que acaba por se tornar “um docente de
História da Arte num instituto londrino” p. 34, que parte em busca das suas
raízes, ao mesmo tempo que se detém reflexivamente sobre o tempo, a memória e a
identidade. Para Sebald, aspectos fundamentais na (re)construção de qualquer
indivíduo, povo ou nação.
A nós, portugueses, a cultura da rememoração de Sebald
diz-nos muito; o saudosismo serôdio sobre o nosso passado colonial, a consequente
racionalização desse sentimento na consciência geral, mais parece levar ao
esquecimento do horror da guerra em que o colonialismo se impôs. A teoria freudiana
teria alguma coisa a dizer sobre a normalidade que os tempos de paz denega,
isto é, das cicatrizes de um trauma não elaborado.
As misturas de texto com fotografias a preto e branco fazem
com que Austerlitz pareça uma espécie de documentário, cuja pesquisa se
centra na própria memória dos acontecimentos. Nesse sentido, a obra de Sebald deve
ser lida como um desdobramento da conhecida proposição benjaminiana de que todo
documento de cultura é fundamentalmente um documento de barbárie.
Austerlitz é um dever da memória,
como se só nos pudéssemos ver quem realmente somos retrospectivamente (sabendo
exactamente o que está(va) para vir). Ainda que ensombrado pelas ruínas da
guerra e da destruição, do genocídio e do exílio, Austerlitz é uma
leitura tão hipnóptica quanto fascinante. Hipnóptica pela melancolia e
ambiências; fascinante pela escrita belíssima.
Lê-se na contracapa: “Austerlizt é uma poderosa reflexão sobre o ponto em que as memórias pessoais de um homem se cruzam com a História.”
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