O TEMPO – HEIDEGGER – SEBALD
Desperdicei o tempo, e agora é o tempo que me desperdiça.
Pois fez de mim o seu relógio.
Os meus pensamentos são minutos, e com suspiros tocam
No mostrador dos meus olhos
Onde o meu dedo, como um ponteiro
Avança ainda, limpando-lhe as lágrimas.
- Ricardo II
A força viva da arte de William Shakespeare ilustra bem o modo como compreendemos o tempo. No famoso solilóquio de Ricardo II antes de morrer, o rei compara-se a um relógio. É uma analogia na qual compara os seus olhos ao mostrador, o seu pensamento aos minutos, e os seus dedos aos ponteiros do relógio. O tempo é um dos enigmas mais antigos da filosofia. E é de tal modo importante, já que a filosofia, desde os seus primórdios, chegou a definir a verdade, como o contrário do tempo – a eternidade.
Como se sabe, Platão estabeleceu a eternidade para definir o ser de tudo aquilo que é. Quer dizer: aquilo que não muda é que é a verdade. A partir daqui, traçou-se a linha mestra da nossa tradição cultural desde há vinte e cinco séculos.
Por outro lado, para Aristóteles, o tempo é a medida do movimento. Por efeito, o tempo fica submetido ao espaço, já que o movimento é um elemento espacial. E assim, o tempo torna-se numa medida quantificável relativo ao espaço. Portanto, a noção de tempo que vigora na nossa cultura, que vai de Aristóteles a Newton até Einstein, dá-se pela definição do tempo como medida.
Se prestarmos atenção à nossa linguagem, damo-nos conta das metáforas espaciais que utilizamos para nos referirmos ao tempo: referimo-nos ao futuro como algo que está adiante, enquanto o passado está lá atrás. Por conseguinte, esta noção determina fortemente a nossa linguagem.
A complexidade do pensamento de Martin Heidegger (que tem andado arredado deste blogue) aponta-nos uma direcção para decifrar a vida, e vem criticar este paradigma da noção de tempo marcado por Aristóteles. Para Heidegger, o tempo não foi pensado a partir do seu interior.
Se nos socorreremos do conceito de tempo na tradição
cristã, que é entendido como eternidade, também não nos facilita a compreensão.
Para Heidegger, o tempo cristão, é uma desvalorização ontológica do tempo, pois,
como se compreende, procura alcançar o tempo a partir daquilo que está fora
dele.
Resumindo: o tempo, tanto na tradição platónica, aristotélica e cristã, nunca foi pensado a partir dele mesmo, mas sim como algo aonde as coisas se desenrolam, medido pelo tempo do relógio. Assim, a nossa tradição de compreender o tempo é apenas como forma de medir, sem ter a ver com o tempo ele mesmo.
Ora, o tempo, para Heidegger, possui uma dimensão ilusória e homogénea, no sentido em que é concebido como sendo igual por ter as mesmas horas – indicando uma ausência de disposição “afectiva e “emocional” – indicando uma disposição de medida, tendo em vista o relógio.
Heidegger diz-nos que para termos uma experiência qualitativa do tempo, é preciso reconhecer a sua disposição “afectiva” e “emocional”. Não ouvimos dizer com frequência a certas pessoas que não lêem porque têm pouco tempo? “Não ter tempo significa lançar o tempo no presente reles do quotidiano” é este o resumo ambicioso mas o único possível para o conceito de tempo, segundo Heidegger. Se o tempo que rege a leitura de um livro, se apenas se baseia no tempo como medida de movimento, o seu carácter desaparece e tornamo-nos apenas cumpridores de etapas. O mesmo é dizer de tudo o resto.
O tempo, segundo Heidegger - é a passagem que constitui o existir do próprio homem - não o espaço pelo qual as coisas acontecem. O tempo é entendido como passagem (entre a morte) – relativa à finitude humana (ser-para-a-morte).
Heiddeger uniu ser e tempo como se fossem indissociáveis, em oposição à tradição generalizada que considerava o ser como algo absoluto, imutável, eterno. O tempo é humano - relativo, imperfeito e imaterial.
Heidegger, ao questionar-se sobre “o agora do relógio” parte da premissa de que nós não estamos no tempo, mas somos o próprio tempo. “Nesta hora, agora que olho para o relógio... Que é este agora? Agora, que faço..., agora se, porventura, se apagar aqui a luz. O que é o agora? O agora está à minha disposição? O agora sou eu? São os outros? Cada um? O tempo, então, seria eu mesmo, e cada qual seria o tempo. E nós, no nosso estar uns com os outros, seríamos o tempo... nenhum de nós e cada um.”
(Heidegger, Conferência Tempo e Ser, proferida a 31 de janeiro de 1962, no Studium Generale da Universidade de Friburgo, dirigido por Eugen Fink, o título Tempo e Ser caracteriza, no resumo do tratado Ser e Tempo (1927) p. 31, trad. de Ernildo Stein, Victor Civita Editor, 1973 ).
Os dias e as horas nada mais são do que uma unidade de medida. Para Heidegger, compreender o tempo a partir de si mesmo, é compreender que nós somos o próprio tempo. Isto é, assim como o tempo deve ser visto pelo seu interior e não por algo que está fora - o que passa e se transforma - não é o tempo, e sim nós mesmos.
Depois, depois vem W. G. Sebald com o seu belíssimo Austerlitz para baralhar tudo isto. Como alemão, leu certamente, Heidegger e o seu Ser e Tempo. Parte da mesma abordagem fenomenológica para nos dizer que a ideia de tempo é uma ilusão, mas também que, a história e o tempo não existem. Tudo está “ao-aí” algures, como se o futuro já existisse e o passado nunca passasse.
Vejamos como Austerlitz, de acordo Heidegger, também nega a tradição linear do tempo como unidade de medida e cálculo.
“O tempo, disse Austerlitz na sala de astronomia de Greenwich, é de longe a mais artificial das nossas invenções e ligá-lo aos planetas aos planetas que giram em torno dos seus eixos não é menos arbitrário do que, digamos, um cálculo baseado no crescimento das árvores ou no tempo que uma pedra calcária leva a desintegrar-se, à parte o facto de o dia solar pelo qual nos guiamos não fornecer medidas exactas, pelo que, para obtermos a contagem do tempo, temos que inventar um sol médio imaginário com um movimento de velocidade invariável e cuja órbita não se incline para o equador. Se Newton pensasse, disse Austrelitz, e apontou pela janela para a curva que a água desenha ao rodear a Ilha dos Cães com a última luz do dia, se Newton realmente pensou que o tempo é uma corrente como a do Tamisa, então onde é que fica a nascente do tempo e a que mar vai ele no fim desaguar? Todos os rios, como sabemos, têm de ter margens de ambos os lados. Assim sendo onde estão as margens do tempo? Quais seriam as suas qualidades específicas, correspondentes talvez às da água que é fluida, algo pesada e transparente? Em que é que as coisas mergulhadas no tempo diferem das que ele não afecta? Qual o significado de mostrarmos as horas de luz e as de escuridão no mesmo círculo? Porque é que o tempo de um lugar fica eternamente parado e se esfuma e num outro se precipita? Não se poderá afirmar, disse Austerlitz, que o tempo ao longo dos séculos e dos milénios tem sido assíncrono? Afinal, não foi assim há muito tempo que ele se expandiu. E não tem sido a vida das pessoas em muitas partes do mundo até hoje regida menos pelo tempo do que pelas condições atmosféricas, logo, por uma grandeza não quantificável que desconhece a regularidade linear, que não avança sempre em frente, antes se move em turbilhão, que é marcada por estagnações e surtos, recorre sob a formas sempre diferentes e evolui para não se sabe que direcção? O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há pouco vigorava tanto nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole temporal, como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse Austrelitz, nunca possui qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso que eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à chegada tudo como dantes ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos do tempo existiriam simultaneamente, caso em que nada do que a história conta seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensamos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco ou nada animadora da eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto.”
(Sebal in, “Austerlitz”, pp.94-95-96, trad. de Telma Costa, Quetzal Editores, 2012).
O pensamento de Austerlitz pode ser perturbador e até contraditório. Se, por um lado, desliga o tempo da matéria, por outro, justifica o “estar fora do tempo” pelo lado “afectivo e emocional” “da interminável dor” da humanidade. Todavia põe questões para as quais não temos resposta.
Notas à margem: O tempo do ponto de vista da lei da irrevisibilidade biológica, tem consequências da mais fundamental importância: ou é mudança ou não é tempo. Em função desta lei, “ mudança não significa só evolução, o que é evidente, mas ainda mudança que não se identifica com nenhuma outra mudança, transformação que não se reduz nunca ao ponto de partida. Do nascimento à morte, o organismo nunca é idêntico a si mesmo.” (António Lobo, Dicionário de Filosofia, Plátano Editora, 1989).
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