Cartões-postais da Alsácia
Cartões-postais da Alsácia via Georg Büchner e Paul Celan
“À noite, chegou ao cimo, ao planalto nevado de onde se desce, do lado oeste, para a planície. Sentou-se. Tudo, com a noite, se tornara mais calmo, as nuvens imobilizadas no céu. Tão longe quanto a vista alcançava, nada senão cumes de onde desciam vastos declives. E tudo tão tranquilo, cinzento, crepuscular. Sentiu-se terrivelmente só; estava só, absolutamente só. Queria falar consigo mesmo, mas não o conseguia. Mal ousava respirar, ao andar, mesmo cautelosamente, os passos ressoavam como trovões. Devia deitar-se. Uma angústia indizível o tomou, no meio deste nada gigantesco: encontrava-se no vazio! De um salto levantou-se e desceu a correr.Chegara a escuridão, a terra e o céu confundiam-se. Tinha a sensação de que alguma coisa o perseguia, que algo de terrível o ia atingir e que os homens não podem suportar: como se a Demência montada, montada nos seus cavalos, o procurasse. Finalmente, ouviu vozes, viu luzes e sentou-se aliviado. Disseram-lhe que estava ainda a meia-hora do presbitério de Waldbach.”
(George Büchner in, Lenz, pp. 26-27. Tradução e introdução de Ernesto Sampaio, Hiena Editora, 1994).
“Isto significa uma retirada da esfera do humano, uma saída para um domínio voltado para o humano e inquietante – o mesmo onde a figura do macaco, os autómatos, e com eles…ah, também arte, parecem estar em casa. Não fala assim o Lenz histórico. É o Büchner quem assim fala, ouvimos a voz do próprio Büchner: para ele, a arte continua a ter, também aqui, algo de inquietante.”
(Paul Celan, "Meridiano", “Discurso por ocasião da entrega do Prémio Georg Büchner” p. 49.Trad. de João Barrento e Vanessa Milbeiro, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, 1996.)
“Na manhã do dia seguinte desceu e, calmamente, contou a Oberlin que a mãe lhe tinha aparecido. De vestido branco, saíra do muro do cemitério com duas rosas no corpete, um branca e outra vermelha; depois sumira-se na terra, e as rosas despontaram lentamente no chão que a cobria. Estava morta, disso não havia a mínima dúvida. Oberlin contou-lhe então que estava sozinho nos campos quando lhe morreu o pai, e ouviu uma voz anunciar-lhe aquela morte. Falou-lhe também do povo da montanha, das raparigas que pressentem a presença da água e do metal debaixo da terra, de homens atacados por espíritos de nas altas serranias, de ter caído uma vez numa espécie de sonambulismo ao fitar uma torrente profunda. Lenz explicou-lhe que o espírito das águas o tinha enfeitiçado, e que nesse instante devia ter experimentado alguma coisa de essência particular daquele espírito. E prosseguiu: a natureza mais simples e mais pura é a que está mais estreitamente ligada à natureza elementar, quanto mais o homem refina a sua vida e o seu sentido espiritual, mais nele se esbate o sentido elementar. Lenz considerava-o pouco autónomo e não o tomava por um estado superior, mas pensava que ser tocado pela vida própria de todas as formas, ter uma alma para as pedras, os metais, a água, as plantas, acolher em si, como num sonho, todos os objectos da Natureza, do mesmo modo que as flores absorvem o ar com o crescer e minguar da lua […]” (George Büchner, Lenz, pp. 37, 38, 39.)
“Quem traz a arte diante dos olhos e no sentido – e continuo a referir-me à história de Lenz – esqueceu-se de si. A arte provoca um distanciamento do Eu. A arte exige aqui, numa direcção determinada, uma determinada distância, um determinado caminho.”
(Paul Celan, "Discurso de agrdecimento do Prémio Georg Büchner" p. 51.)
“Era cada vez mais desesperado seu estado, tinha desaparecido toda a tranquilidade que lhe adviera da paz do vale e do convívio com o clérigo, e um imenso rasgão dilacerava agora o universo que julgara ampará-lo; já não sentia ódio, nem amor, tão pouco esperança… Só um vazio pavoroso, e a torturante obsessão de preencher esse vazio. Não tinha nada. O que fazia, fazia-o sem consciência, constrangido por um instinto profundo. Quando estava sozinho, sentia-se tao brutalmente desamparado que chamava por si aos gritos, assustando-se com a sua própria voz, como se fosse a voz de outro. Ao conversar, calava-se bruscamente, perdia o fio às frases, e depois ganhava-o um terror indescritível, repetia sem cessar a última palavra pronunciada. Tranquilamente sentado junto das pessoas, discorrendo calma e livremente, assustava-as quando de súbito emudecia e, de expressão transtornada, apertava convulsivamente o braço dos que estavam a seu lado. Se lia ou estava só, ainda era pior; toda a actividade espiritual se lhe concentrava numa ideia fixa. Se pensava muito numa pessoa, se distintamente a evocava na memória, julgava transformar-se nela; completamente perdido, um impulso infinito levava-o, em espírito, a virar do avesso tudo o que o rodeava… A natureza, as criaturas, tudo, excepto Oberlin, lhe parecia frio, sem peso, como num sonho. Divertia-se, em imaginação, a pôr as casas em cima dos tectos, a vestir e a despir os homens, a inventar as partidas mais extravagantes. Por vezes, tomava-o a vontade irresistível de executar o que lhe passava pela cabeça, e fazia então horríveis caretas.” (Georg Büchner, Lenz, pp. 67-68.)
“O poema é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o
escreve torna-se parte integrante dele. Mas não se encontrará o poema,
precisamente por isso, e portanto já neste encontro, na situação do encontro – no
mistério do encontro?"
(Paul Celan, “Discurso por ocasião da entrega do Prémio Georg Büchner” p. 57.)
"Na manhã seguinte, com um tempo escuro e chuvoso, Lenz entrou em Estrasburgo. Parecia calmo, senhor de toda a sua razão. Falava com as pessoas. Procedia como toda a sua gente; mas havia nele um pavoroso vazio, uma ausência completa de angústia ou de desejo. A existência, agora, pesava-lhe como um fardo necessário.
Assim viveu desde então…"
(Georg Büchner, Lenz, pp. 75-76.)
"Minhas Senhoras e meus Senhores: encontro alguma coisa que
consola um pouco por, na vossa presença, ter percorrido este caminho do
impossível, este caminho impossível. Encontro aquilo que une e como que conduz
o poema ao encontro. Encontro qualquer coisa – como a linguagem – de imaterial,
mas terreno, planetário, de forma circular, que regressa a si mesma depois de
passar por ambos os pólos e – coisa divertida! – cruzar os trópicos: encontro um
meridiano.”
(Paul Celan, Meridiano", “Discurso por ocasião da entrega do Prémio Georg
Büchner” p. 63.)
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