A realidade em música
É difícil imaginar a realidade sem Alfred Brendel. A sua singularidade não se dá a ver como a dos outros pianistas, joga-se ao lado, no espaço em que se desenrola a sua vida. Essa vida é a vida da música, literatura, pintura, filosofia, arquitectura, cinema.
Esta sobreafirmação do seu espírito permite-nos sentir em que cosmos de ideias estamos envolvidos; um espírito que declara que A Regra do Jogo de Renoir é o filme mais grandioso da história tem certamente a capacidade de compreender bem o que é a realidade através da música.
Alfred Brendel é ao mesmo tempo célebre e mal conhecido. Para muita gente é um pianista austríaco, com tudo o que tem de positivo para os adeptos das escolas de interpretação, ou de negativo para aqueles que consideram o estilo vianense uma tradição, um livro de receitas de onde se extraem exemplos para imitar.
Brendel considerava academismo de Viena insuportável. A partir do momento em que assistiu assombrado aos recitais do pianista Alfred Cortot, apesar das falhas de memória e das notas erradas do velho senhor, foi capaz de ver em Cartot a liberdade criadora, a técnica admirável, o rasgo poético, mesmo quando era pouco fiel ao texto. Foi o único artista que Brendel afirmou tê-lo marcado profundamente.
Ao contrário de muitos outros pianistas, Brendel não é herdeiro de uma linhagem, de uma escola pianista: é um espírito universal. Ele foi apenas discípulo dos compositores que tocou e dos artistas que venerou, mesmo sem ter recebido lições desses mestres.
Reconhecido como um grande interprete de Beethoven, de Mozart, de Brahams, de Hayden, Alfred Brendel deixou uma marca perene pelas suas interpretações das obras dos dois Franz: Schubert e Liszt.
Era por natureza independente, apesar de não saber cozinhar ou de conduzir automóveis. Poeta, escritor, ensaísta, Brendel não se assemelha a ninguém. É o pianista que mais me fascina.
Observemo-lo na interpretação da Sonata nº 20 de Schubert. O primeiro andamento é de uma energia totalmente beethoviana, em que a figura rítmica domina a linha melódica. A junção destes universos aparentemente incompatíveis, apenas afirma o seu caracter selvagem e desenfreado que alimenta as trepidações próprias de uma paixão.
O segundo andamento é uma das páginas mais célebres de toda a música de Schubert: lânguida e trágica, quase soluçante, que provoca uma quase dilaceração da melodia. Uma projecção da solidão humana.
O terceiro andamento é uma valsa que contrasta radicalmente com o andamento precedente. Com o seu tom irónico diluem-se as emoções anteriores.
O último andamento é uma melodia tipicamente schubertiana, um canto de confidência onde a mistura de sentimentos é delicada: há tanto de lirismo como de tristeza.
O imenso fluxo sonoro final vem por fim libertar todas as emoções.
Como nos sonhos em que se canta.

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