A Condição Humana

  

                                “Não há dignidade que não se funde na dor”

                                                        

 

Num momento em que a maioria das livrarias, para não dizer a totalidade, dá uma primazia à literatura anglo-saxónica, fazendo parecer que só existe literatura de expressão inglesa, recordaria um dos livros injustamente esquecidos. A Condição Humana, de André Malraux.  

Trata-se da história da luta de um conjunto de revolucionários na Xangai de 1927 - data em que foram massacrados os comunistas da ala esquerda do partido Kuomintang.

 Malraux oferece-nos uma Xangai tão mágica quanto misteriosa. Os jogos e a alternância dos efeitos de luz da sua jubilosa prosa, servem como pontos de interrogação aos espaços de claridade e de trevas, da vida e da morte. O autor coloca como pano de fundo o coração da revolução, para mostrar como o ponto de vista de cada indivíduo forma a conscência trágica da sua própria condição.

Mas detenhamo-nos no seu contexto político. Xangai, anos vinte do século passado. Cidade cosmopolita, onde se cruzam pessoas e os interesses económicos de um grande consórcio empresarial francês. De um lado, chineses revolucionários, do outro, chineses do regime de Chiang kai-Chek apoiados pelos franceses; levam ao limite A Condição Humana na sua violenta luta pelo poder.

Para os activistas comunistas, a acção imediata, a revolução, é a única via possível para levar a cabo o socialismo.  No entanto, Moscovo receia a inferioridade de forças perante o poder do regime de Chiang Kai-Chek. Para os apoiantes russos, era necessário recuar estrategicamente, entregando as armas, para que a conquista do poder se fizesse de forma cuidadosamente planeada, “julgam que a Revolução russa se fez num dia?” (P.119).  Mas para os comunistas chineses, com o povo sacrificado a “rebentar de fome” (p.119), não se podiam compadecer com este recuo, que viam como capitulação.

Assim deflagra a revolta: Chiang Kai-Chek recorre à mais extrema violência para a reprimir. Inicia-se o ciclo fechado de violência sob três aspectos fundamentais que traduzem este terrível drama:

 A crueldade física– “arrancavam os membros dos condenados com tenazes” (p.193).

A vingança – “Agora também podia matar. Era-lhe de repente revelado que a vida não era o único modo de contacto entre os seres, que nem mesmo era o melhor; que os conhecia, os amava, os possuía mais na vingança do que na vida” (p.193).

A morte – “ A humanidade era espessa e pesada, pesada de carne, de sangue, de sofrimento, eternamente colada a si mesma como tudo o que morre” (p.253).

 

 Podemos encontrar aqui grande parte da explicação para a “pulsão” suicida dos terroristas: quem procura o absoluto, procura a morte. Não para fazer do terrorismo uma religião, mas “o sentido da vida” [...] a posse completa de si próprio. Total. Absoluta. A única. Saber. Não procurar, constantemente, ideias e deveres", mas  "dominar mais a exaltação do que ser dominado por ela”, afirma Tchen, um dos terroristas (p.142).

 “ Pensara sempre que é belo morrer da nossa morte , de uma morte que condiga com a vida. E morrer é passividade, mas matar-se é acto”, dirá ainda Kyo  (p. 228).

E quando não se acredita numa causa, acredita-se numa mulher. “Talvez o amor seja sobretudo o meio que o ocidental emprega para se libertar da sua condição de homem…”(p.173). 

No fundo todo o homem aspira a superar A Condição Humana: “sonha ser Deus", ou pelo menos, Homem-Deus; "o homem não quer governar: tem de forçar” (p.173), de dominar ou ter o poder para mudar algo. A violência deixa de ser apenas uma forma de vingança, é já um sentido da existência, uma forma de superar A Condição Humana. 

Esta ideia de uma realidade, ou de uma condição humana atrás de um mundo habitável, recorda-nos o platonismo: se platonismo punha o Bem no lugar de Deus; aqui, é o poder simultaneamente transformador e destruidor do homem que ocupa o lugar de Deus.

Trata-se pois de uma reflexão pungente,  sobre a trágica  Condição Humana quando se vê confrontada com dilemas extremos, colocada na fronteira da vida, ao serviço de ideias que procuram dar sentido à existência. Pois é nos momentos de maior instabilidade que sentimos a realidade mais profunda.

Malraux demarca cuidadosamente as personagens umas das outras, cada qual com os seus dilemas, as suas fraquezas, fundamentalmente, com os seus limites. Uma delas, Clapique, decisiva no influir dos acontecimentos, corresponde àquele tipo de indivíduo que se movimenta em todos os meios, que joga com todas as forças em presença e procura escapar sempre ileso no meio das grandes confrontações - e que trai - ora uns ora outros.

 Vive-se em condições extremas, a experiência dos limites vai revelando A Condição Humana, isto é, a vida condenada - em que a morte e a vida representam o destino de qualquer ser humano - no meio do amor, da esperança, da amizade, da fraternidade e do sacrifício, e em cada uma das personagens se debate e vai conhecendo o seu fim.

O sentido cronológico do romance confere-lhe uma poderosa capacidade de suspensão. As horas pontuam a acção - o seu sentido urge - aproximando-se irremediavelmente do fim. A morte.

As personagens debatem-se com o fim de linha; algumas, jogam o seu destino por “causa da fantasia e da liberdade do seu espírito que a roda da sorte punha ao acaso” (p.183); outras, enfrentam-no, decidindo a própria morte - “de que valeria uma vida pela qual não se aceitasse morrer” (p.228); outras ainda, revelam a sua grandeza, a grandeza que pode haver nos homens.

Às seis horas do dia 11 de Abril de 1927 duzentos activistas comunistas feridos são atirados “para uma grande sala de antigo pátio de escola”, onde “o pavor estava ali…não o medo, mas o terror, o dos animais, o dos homens sozinhos ante o inumano” (pp 223,224).

Todos vão ser mortos. Queimados vivos, atirados para a caldeira de uma locomotiva. Mas alguns, vão ser torturados antes de serem mortos.

Katow, uma das personagens centrais, vê dois jovens que foram atirados para ali também, cede-lhes a sua cápsula de cianeto que lhes vai permitir não escapar à morte, mas escapar à tortura antecipando a morte. Oferece-lhe a cápsula de cianeto para lhes evitar o sofrimento, assumindo ele próprio o sacrifício. Uma atitude de grandeza. 

Um gesto que marca o que pode ser a grandeza dos homens.

 

Outro dos grandes arredados das livrarias, o notabillíssimo poeta, romancista e ensaísta Jorge de Sena, no seu inspirado e informado prefácio e que traduz esta edição da editora “Livros do Brasil”, afirma que não se é o mesmo antes e depois de se ler esta obra.

De facto. Um dos livros da vida. 

 

 Fica o Adagio de cordas de Samuel Barber transcrito para viloncelo  "in memoriam" deste admirável livro. Julgo que só a intensidade expressiva deste adagio - simultaneamente lírico e austero - num crescendo gradual que culmina num vértice de expressividade, faz inteira justiça ao lamento fúnebre do final deste livro.

                                                             



 

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