A nudez da Verdade

 

                                                         



Dotado de um pensamento exuberante e autor de referência para Elias Canetti, Walter Benjamin, Hermann Broch, Musil, Zweig e Adorno, só para referir algumas figuras de proa da literatura e do pensamento - de Karl Kraus chegaram-nos mais lúcidas interpretações de um mundo em decadência - desde o início do século XX, desde a Primeira Guerra Mundial, fundamentalmente, desde a aberrante junção-fusão entre o comerciante e o herói:

 “Ser comerciante e ser herói, e ter de ser este para poder continuar a ser aquele”.

 Em 1899 criou o jornal “Die Fackel” (O Archote), e foi o único redactor ao até ao ano da sua morte (1936). Para se ter uma ideia da enormidade da sua produção, foram 922 números, em cerca de 30.000 páginas, na maioria escritas por ele mesmo, além de colectâneas de poemas e peças de teatro. Tudo somado, deparamo-nos talvez com a mais extensa obra literária jamais escrita. Os seus aforismos são o mais provocador monumento intelectual do século XX. Que diria ele do nosso "apocalipse estável"? Assertivamente isto:

“Eu escrevi uma tragédia cujo herói condenado a sucumbir é a humanidade […] como este drama não tem outro herói senão a humanidade, também não tem ouvintes. Mas o que é que faz perecer o meu herói trágico? Acaso a ordem do mundo foi mais forte do que a personalidade dele? Não, a ordem da natureza foi mais forte do que a ordem do mundo. Ele sucumbe à mentira: a mentira de preservar nas velhas formas da vida a insubstancialidade em que depositou o velho conteúdo da sua humanidade. Ser comerciante e ser herói, e ter de ser este para poder continuar a ser aquele. Ele é vítima de um estado que agiu sobre ele como embriaguez e constrangimento ao mesmo tempo. Existem culpados? Não, senão existiriam vingadores, senão o herói humanidade ter-se-ia defendido contra a maldição de ser escravo dos meios que usa e mártir das necessidades que tem. E se os meios da vida consomem os objectivos da vida, eles exigem que se sirva os meios da morte, para envenenar mesmo os que sobreviverem. Se houvesse culpados, a humanidade teria recusado a obrigação de ser herói para um tal fim!” 

 

 in Os últimos dias da Humanidade, p 354, selecção, tradução, posfácio e notas de António Sousa Ribeiro. Capa de Ricardo Barros, Antígona Editores, 2003.

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