A humanização integral do animal coincide com uma animalização integral do homem.
«Heidegger foi talvez o último filósofo a acreditar de boa-fé que o lugar da pólis – o pólos onde reina o conflito entre latência e ilatência, entre animalitas e a humanitas do homem – fosse ainda praticável, que – situando-se naquele lugar arriscado – fosse ainda possível para os homens – para um povo – encontrar o seu destino histórico. Foi assim o último a acreditar, pelo menos até um certo ponto e não sem dúvidas e contradições, que a máquina antropológica, decidindo e recompondo, a cada vez, o conflito entre o homem e o animal, entre o aberto e o não-aberto, pudesse ainda produzir história e destino para um povo.
É provável que, a certa altura, se tenha apercebido do seu erro e compreendido que, em lado nenhum, uma decisão que respondesse a um encaminhamento histórico do ser era ainda possível. Já em 1934-35, no curso sobre Holderlin em que se tenta despertar a “tonalidade emotiva fundamental da historicidade do Dasein”, escreve que “a possibilidade de uma grande comoção (o mesmo termo que define o ser exposto do animal num indesvelado) na existência de um povo está esgotada. Templos, imagens e costumes já não estão em condições de assumir a vocação histórica de um povo de modo a incumbi-la de uma nova tarefa” (Heidegger 1980, 99). A pós-história começava já bater à porta da metafísica consumada.
Hoje, a quase setenta anos de distância, é claro para quem não esteja de absoluta má-fé que já não existem, para os homens, tarefas históricas passíveis de serem assumidas ou, mesmo, sequer atribuíveis. Que os Estados—nação europeus já não estivessem em condições de assumir tarefas históricas e que os próprios povos fossem votados a desaparecer era, de certa forma, evidente logo a partir do final da Primeira Guerra Mundial. Enganamo-nos completamente sobre a natureza das grandes experiências totalitárias do século XX se nela vemos apenas uma prossecução das últimas grandes tarefas dos Estados-nação oitocentistas: o nacionalismo e o imperialismo. O que está em causa é agora bem diferente e mais extremo; dado que se trata de assumir como tarefa a própria existência factícia dos povos, ou seja, em última análise, a sua vida nua.
Deste ponto de vista, os totalitarismos do século XX constituem verdadeiramente a outra face da ideia hegeliana do fim da história: o homem alcançou finalmente o seu télos histórico e nada resta, a uma humanidade de novo tornada animal, que a despolitização das sociedades humanas através do alastramento incondicionado da oikomania, ou a assunção da própria vida biológica como tarefa política (ou melhor, impolítica) suprema.
É provável que o tempo em que vivemos não tenha escapado a esta aporia. Será que não vemos, à nossa volta e mesmo entre nós, homens e povos sem essência e já sem identidade – entregues, por assim dizer, à sua inessencialidade e inoperância – procurar por todo o lado e às cegas, a custo de grosseiras falsificações, uma herança e uma tarefa, uma herança como tarefa?
Mesmo a pura e simples deposição de todas as tarefas históricas (reduzidas a simples funções de política interna e internacional), em nome do triunfo da economia, assume hoje frequentemente uma ênfase na qual a própria vida natural e o seu bem-estar parecem apresentar-se como a última tarefa histórica da humanidade – admitindo que faça sentido falar aqui de uma “tarefa”.
As potências históricas tradicionais – poesia, religião, filosofia – que, tanto na perpectiva de Heidegger, mantinham desperto o destino histórico-político dos povos, foram há muito tempo transformados em espectáculos culturais e experiências privadas e perderam toda a eficácia histórica. Perante este eclipse, a única tarefa que parece ainda conservar alguma seriedade é o tomar a cargo a “gestão integral” da vida biológica, isto é, da própria animalidade do homem. Genoma, economia global, ideologia humanitária são as três faces solidárias deste processo em que a humanidade de pós-histórica parece assumir a sua própria fisiologia como último e impolítico mandato.
Se a humanidade que tomou em mãos o mandato da gestão integral da própria animalidade é ainda humana, no sentido da máquina antropológica que, de-cidindo a cada vez acerca do homem e do animal, produzindo a humanitas, não é fácil dizer; nem é claro se o bem-estar de uma vida que já não se sabe reconhecer como humana ou animal pode ser dada como satisfatório.
Claro que, na perpectiva de Heidegger, uma tal humanidade já não tem a forma do manter-se aberto ao indesvelado do animal, mas procura sobretudo abrir e assegurar em cada âmbito o não-aberto e, com isso, fecha-se à sua própria abertura, esquece a sua humanitas e faz do ser o seu desinibidor específico. A humanização integral do animal coincide com uma animalização integral do homem.»
Giorgio Agamben, [in Animalização], O Aberto. Tradução de André Dias, Ana Brigotte Vieira. Edições 70. 2012
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