A doçura da arte pianística

 

                                                          

                                                    Positano                                              

 

Se há sítios onde me imagino viver é em Itália. Uma região que reúne tantas e diversas características. Pela tipologia romântica das paisagens, pelo design, artes e cultura, faz de Itália o berço da beleza. Não conheço território tão belo quanto inspirador.

Partilho as mesmas afinidades electivas com Wilhem Kempff (1895/1991), ele também era fascinado por Itália, pelas suas paisagens banhadas de sol, tão belas que o levaram a fixar residência na pequena vila de Positano – um monte que mergulha no mar.

Como seria possível tocar um Brahms totalmente "nórdico", por assim dizer, sabendo Kempff que o próprio Brahms sonhava com o sul, o sol e o perfume dos limoeiros junto ao mar do mediterrâneo?

                                                               

Creio que o seu lado apolítico nos ajuda a compreender a sua dimensão humana. Kempff carregava nos ombros a Alemanha de Goethe e de Beethoven, mas, sendo alemão, contrariamente a alguns dos seus colegas, nunca adoptou uma rejeição estética em função das suas origens culturais ou raciais. Pelo contrário, Wilhem Kempff, um prussiano do século XIX que não sonhava senão com Itália, que tocava Chopin, Rameau e Fauré, jamais foi aflorado por semelhantes pensamentos discriminatórios.

 Kempff representava uma anomalia, um resquício de um mundo antigo que sobrevivera à Primeira e à Segunda Guerra mundiais. O pianista atravessou os anos de guerra como um fantasma: é certo que actuou em França, um país ocupado, mas numa posição totalmente apolítica. Porventura, era mais amado na capital francesa do que na Alemanha.

Aquando do seu regresso a França, após a Segunda Guerra Mundial, e sem pronunciar qualquer discurso que fosse, Kempff reconciliou a França e a Alemanha: bastava que se sentasse ao piano com a doçura da sua arte pianística.

Tudo quanto kempf sonhou de mais elevado foi construído com base no estudo, na leitura e na vida, o que se veio a revelar mais importante do que o virtuosismo gratuito que lhe inculcaram no Conservatório.

Alain Lompech num ensaio que dedica ao pianista, conta o seguinte episódio. Um certo dia Kempf tocou a Sonata “Hammerklavier” de Beethoven diante do compositor Jean Sibelius e este declarou ”Você não tocou como um pianista, mas como um ser humano.”

Kempf considerava este cumprimento o mais belo que jamais recebera sobre a sua maneira de “fazer” música. Sendo ele próprio compositor, sabia até onde era possível avançar sem trair a obra musical. Kempf personificava a liberdade do pianista e os riscos que assumia estavam perfeitamente à altura da sua inteligência.

Que significa afinal tocar como um ser humano?

Tal traço está no encontro espontâneo com a música, pela ideia que Kempff nos transmite de que cada partitura é uma aventura sonora e espiritual, em que o sentido (oculto) nos é revelado.

Kempf não era nem um demiurgo, ou “um quadrado”, quer dizer, um porta-voz, era antes um médium que estabelecia a relação entre o cosmos e aqueles que como nós amam a música.

Através do segundo andamento do terceiro Concerto para Piano e Orquestra de Beethoven, ouçamos pois o deslizar das mãos de Wilhem Kempf em direcção às colinas arborizadas à beira-mar de Itália. 

                                                   



                                                                                              

                                                                     Positano

 

 

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