Sobrecarga estética
Dia 403 do ano 2020. Diário de leitura
“Há a tentação de escrever um texto inabitável, uma espécie de mapa solitário e limpo, diante do qual o engenheiro da fábula não possa maquinar o seu empenho de aventura humana, com as palavras: aqui fica uma rua, aqui uma ponte, aqui um parque, aqui a mancha cerrada de sentimentos e ideias com o nome de bairro de gente.
Antes da escrita, alguém disse: um momento, engenheiro — eu amaria uma superfície destituída de enigmas, aonde ninguém chegasse, onde não houvesse uma casa paterna, sobretudo, e a perpetração da parábola do filho pródigo.
É um texto que se destina à consagração do silêncio, a gente já pensou tanto, já teve mãos por tantos lados, já dormiu e acordou — bom seria imaginar o espírito apaziguado, a reconciliação do pensamento com a matéria do mundo.
Mestre, não me dês um tema.
E então o texto principia a ser ferozmente habitado.
[…]”
Herberto Helder in, Apresentação do Rosto, pág. 196. Porto Editora, 2020.
A 1ª edição deste importante título publicado pela Editora Ulisseia em Maio de 1968, conheceu de imediato a apreensão de toda a edição por parte da Polícia Política. O tio Herberto é uma das vozes mais pessoais da moderna literatura portuguesa, caracteriza-o o tom original e único da linguagem e estilo, o encantamento do universo poético sempre caudaloso em imagens, o gosto e o prazer de saber escrever, de descobrir os sinais mágicos de um mundo subcutâneo e subterrâneo.
Consequências da superlativa beleza poética herbertiana:
Sobrecarga
estética. O que significa entrar num outro patamar, mais elevado – um nível suficientemente
à parte das inquietações do dia-a-dia.
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