Dia 413 de 2020
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O amor apoia-se no seu próprio êxtase.
E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são – atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume, como um perfume de corpos.
As ribeiras de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor, e a solidão como um lugar inteiro.
Alguém respira onde é vivo – uma boca, um ânus, uma vagina viva.
Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas e ficar respirando nas trevas.
Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.
Alguém se transforma numa coisa inominável. (p. 187)
[…]
As Palavras | Herberto Helder | Apresentação do Rosto | 2ª edição da obra (1ª na Porto Editora | Março de 2020
O tema do amor aparece em vários poemas de Herberto Helder, Ruy Belo numa recensão à obra herbertiana fazia a seguinte pergunta (Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, 2002): “será Herberto Helder um poeta do amor? Não conhecemos, na melhor poesia, outro amor expresso que se não se traduza em omissão da poesia.”
Com efeito, a grande poesia é imune aos lugares-comuns da “virgindade branca da lógica do amor”, para utilizar uma expressão do pornógrafo Henry Miller. Na verdade, a mais rudimentar poesia romântica e o mais miserável romance de cordel são animados pela premissa de que o amor conquista tudo, que as injustiças (sociais, estatuto, dinheiro) são corrigidas pela justiça inata das belas emoções humanas.
Não, Herberto Helder diz-nos em “Apresentação do Rosto”: “o
meu amor abrange crime, solidão e silêncio, como se fossem uma só coisa: um
limite, espécie de milagre ou extremo exemplo”. Se lermos com paixão o poema, notamos que o amor aponta
para o mundo interior de volição, e exerce a função de se transformar naquilo em
que as palavras se silenciam. Está além da linguagem.
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