Dia 412 do ano 2020. II

 

                                                          


                            

Leia-se esta paisagem da direita para a esquerda e vice-versa e de baixo para cima, pode-se saltar as linhas que tremem debaixo dos olhos.

Pode-se ler a cavalo, de pé, ou sentado numa cadeira.

Pode-se sentar a paisagem numa cadeira e lê-la com extrema violência.

É uma paisagem de répteis, de ovos e de máquinas que não calculam.

Há no meio uma flor como a flor segregada pela boca das abóboras.

Quem leia, se ler, leve consigo a flor fria e amarela, crave o pedúnculo no coração, e durma com o sangue e a sua dor de pessoa.

Quem aprender, que sonhe, que lhe cresça o cabelo tumultuosamente, que saiba, saiba até às portas da morte.

Leia-se como for mais conforme com acordar de noite tremendo de espanto.

Leia-se como um milagre cheio do milagre dos erros.

Leve-se para a vigília essa visão como um espelho.

Espelho, procedimento de expansão ardente.

Veja no espelho que é a pessoa que tem o perfume de outra pessoa.

Ressoa, respira, transpira o que é nela a pessoa.

Espelho que soa, conspira, delira – que voa o que é nela a pessoa.

O sono, porém, tem uma qualidade de réptil e de ovo, o sono que está colocado sobre um nascimento, o sono parado sobre um nascimento, o sono parado sobre um movimento – o sono.

A réptil e ovóide qualidade da espera e da paciência.

A qualidade de máquina que maquina silêncio.

E a flor e o espelho, tudo sobre o coração minado de água negra desde o começo da noite.

Flor e espelho quando se dorme nu, de braços abertos, as chagas fervendo em cada parte atacada do corpo, e uma chaga de cal viva onde o corpo não estremece.

Diz qualquer coisa como se o vinho enchesse o teu sono e transbordasse, e lê-te a ti mesmo de lado a lado, entre os pés e as mãos.

Lê o escuro que tomba entre os teus braços como um ramo tenebroso, desfolha-te pétala a pétala, até seres puro como uma paisagem expectante.

Leia-se agora tudo num idioma cada vez mais estrangeiro e, de súbito, nas palavras onde sempre se nasce – sempre.

Esta ciência chama-se ver com o corpo o corpo iluminado. (pp. 177, 178)

 

Herberto Helder | Apresentação do Rosto | 2ª edição da obra (1ª na Porto Editora | Março de 2020

 

Ao lermos este texto, contrariamente a muitos outros do autor, verificamos que é mais musical do que plástico, as repetições fónicas, as palavras idênticas ou não, impõem um ritmo sincopado, numa cadência de começo e recomeço como uma espécie de orquestração.

Entre as várias características de Herberto Helder, uma das que mais sobressai é a de ser um poeta órfico. A preferência dos ambientes nocturnos, como se sabe, é característica dos seguidores deliberados ou inconscientes do mistério e da fantasia.

Como já aqui foi dito, é uma obra proibida e reeditada pela primeira vez em 2020. Na 1ªedição de 1968, Herberto Helder explicou que “Apresentação do Rosto” se tratava de um “livro de um poeta que não receia pôr-se diante do espelho e ver-se em profundidade com os fantasmas da sua verdadeira descoberta de homem que procura a dimensão exata da sua presença no mundo”.

E assim nos devolve em “rosto” para a nossa edificação e aprendizagem, nomeadamente em vocabulário e poesia o que somos. Lê-lo, é como me ler a mim mesmo. E é na medida herbertiana que a literatura se arroga ao direito de me interpretar, explicar, de criticar e de me reduzir ao que quer que seja. Nisso, é implacável.

 

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