Cartografia de ligação aos astros
“O tempo é a substância do que sou feito”, dizia Jorge Luís Borges. Como não seria o tempo a figura e a seiva da música (e da arte)? O Zeitgeist não é o determinado momento que o artista vive? Não é a música, por excelência, a arte do tempo? Neste presente que se encerra desde Março de 2020 com instáveis perspectivas de futuro, damos por nós em exercício de “contraforça” ao confinamento a elaborar as listas de um passado que se arrasta, das músicas, livros e dos filmes. Uma lista organizada como uma parábola, isto é, serve como um catálogo de respostas – emocionais, intelectuais, poéticas, lúdicas – contra a ideia de entropia. Um catálogo que obtém uma certa ordem às custas do aumento da desordem do mundo.
Muitas destas canções expressam o desgosto e a irritação de um quotidiano, seja sob a forma de sátira; como no caso dos Strokes, marcado pelo automatismo dos fantoches, das ideias feitas, dos hábitos, dos engravatados solenes e da estupidez; seja pela forma de uma pop açucarada de Sufjan Stevens, sobre a vacuidade dos pseudovivos das redes sociais; ou ainda, pelo “manifesto” dançável dos Sault associado ao movimento Black Lives Matter. Por outro lado, tivemos a glosa de tudo isto, na criação de um mundo maravilhoso, ou pelo menos ensolarado, como Texas Sun, de Leon Bridges, ou na fuga de Billie Eilish para um promissor futuro. Outras canções, são apenas melodias despretensiosas que escondem um desabafo pela indigência dos nossos dias.
Através desta lista poder-se-ia formular uma teoria da blague. Sim, bem sei, a palavra blague tem sentido indefinido ou ilimitado… quer dizer, corresponde a uma espécie de falta de seriedade estendida a tudo quanto existe. Mas se quiséssemos aqui tirar alguma pedagogia da blague, seria a de corrigir a convicção excessiva com que acreditamos, por outro lado, seria denunciar o ridículo de tudo quanto em nós, é hirto, convencional, de cabeça baixa, tacanho e rotineiro. Desviemos por momentos os ouvidos da mesquinha tarefa rotineira e eis algumas das canções que andámos a ouvir em 2020.
Coney Island
by Taylor Swift & Matt Berninger
"Coney Island" saiu em finais de 2020, e por isso, foi a última a juntar-se a esta lista. Sendo a menos gasta, faz com que seja uma das minhas preferidas. A feliz (ou conveniente) parceria de Taylor Swift com o vocalista dos National, rende-lhe o respeito do gosto indie. Não é por acaso que Taylor Swift foi buscar a inspiração romântica ao decadente parque de diversões de Coney Island; um lugar onde antes tudo era electricidade e magia, e agora de luzes apagadas - servir como metáfora para representar os arrependimentos sobre um relacionamento passado que não deu certo.
Wildfires
by Sault
O peso da substância e a leveza da forma, assim se poderia definir "Wildfires" dos Sault. A misteriosa banda de quem todos falam, deu-nos um álbum poderosíssimo em 2020, de onde vem esta canção de protesto, ou a face dançável do Black Lives Matter.
Texas Sun
by Khruangbin & Leon Bridges
O sol. Foi isso que nos deram os Khruangbin e Leon Bridges: quatro minutos sobre o sol de Texas, como um ciclo biológico a cumprir, ou como uma viagem calorosa a estabelecer-se como próprio destino.
Colours
by Black Pumas
"Colours" é o contraponto a um mundo distópico como o nosso: um hino à diversidade e a um mundo inclusivo e feliz com gente de todas as cores. A melhor actuação na tomada de posse de Joe biden.
On the Floor
by Perfume Genius
"On the Floor" é uma das canções mais viciantes do ano. Atendendo ao vídeo, as personagens não se conseguem ligar mesmo quando os seus corpos assim o desejam. Esta narrativa imagética sugere o que muitos homens gay enfrentam com as suas lutas físicas baseadas nos seus próprios bloqueios.
Stop This Flame
by Celeste
De todos os nomes femininos que abasteceram a cena musical no último ano, a cantora e compositora Celeste é a que tem a voz mais poderosa. Se fechássemos os olhos, diríamos que que "Stop This Flame" podia ser de Adele. Mas não é. É melhor. É o seu single de estreia.
My Future
by Billie Eilish
2020 foi ano de confirmação. O que Billie Eilish é e onde chegou, eis o que chega para demonstrar a surdez de alguns." My future" é plena de uma verdadeira poesis, quer dizer, cria a expectativa de uma realidade futura. O Futuro, é o lugar imanente dos jovens, diz-nos a canção.
Rolling
by Michael Kiwanuka
Rolling está entre as melhores canções do ano. Como já se disse, traz o peso de um joelho no pescoço (onde é que já vimos esta imagem?) mas não há motivos para alarme, deixa-nos com a leveza para a dança.
Held Down
by Laura Marling
Ainda o confinamento ia no adro quando Laura Marling nos ofereceu Held Down para aliviar o peso dos dias. Intimista, pessoal e intransmissível, simples e doce.
Sad Happy
by Circa Waves
A tonalidade nostálgica faz desta pérola indie-pop uma das canções do ano. Isso, ou o facto de 2020 nos ter feito sentir como o palhaço-triste diante do realismo histérico no qual estamos mergulhados.
For Sure
by Future Islands
Há quem diga que os Future Islands andam sempre a fazer a mesma música, e daí? Submete-nos ao constante processo de reabilitá-los cada vez com a fasquia mais alta. Tiveram um lugar garantido ao longo ano passado.
Video Game
by Sufjan Stevens
Sufjan Stevens já nos tinha dado a delicada e belíssima canção "Mystery of Love" do filme "Call Me By Your Name". A pop adocicada de "Video Game" esconde uma crítica mordaz à actual cancel culture e ao afocinhado seguidismo traduzido em likes vazios.
Lost in Yesterday
by Tame Impala
“Perdidos no passado”, ou melhor, andar a remexer no passado, parece que nunca dá bons resultados. Eis a mensagem da canção.
Heavy Balloon
by Fiona Apple
Heavy Balloon é sobre depressão, e representa o peso que
sente ao lidar com ela. Fiona Apple lidou com a depressão toda a vida, e o
quanto isso tem debilitante. Muito se desvaloriza e brinca com a depressão, daí
o título, não um fardo pesado a carregar, mas um “balão pesado”.
The Adults Are Talking
by The Strokes
Ainda não existia a irritante expressão “novo normal” e já os
Strokes tinham criado o neologismo “abnormal” para definir os nossos dias; não é espúrio, nos dias que correm exige-se um releitura crítica à linguagem, ou aos alfabetos precários.
Impossible Weight
by Deep Sea Diver
Os Deep Sea Diver fizeram um álbum que aborda temas importantes, como o título sugere - temas com um “peso impossível de carregar” - como os traumas comuns às mulheres em todos os lugares. A canção-título do álbum, "Impossible Weight",é um flash de força furiosa impulsionada pela guitarra incendiária que fala sobre desmoronar e, em seguida, juntar os pedaços e reerguer.
Nightrider
by Tom Misch & Yussef Dayes, Freddie Gibbs
Canções de primeira necessidade....
ResponderEliminarIsso
Eliminar