Traumas de infância e a mão de Deus

                                                                               

                            Pormenor da mão de Deus e Adão Por Michelangelo Buonarroti   



Se a História, no sentido restrito de «conhecimento do historiável», é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses se fazem de si mesmos.

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As «Histórias de Portugal», todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de «robinsonadas»: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. (E esta forma mentis reflecte-se na nossa criação literária, toda encharcada de monólogos, o que explica, ao mesmo tempo, a nossa antiga carência de fundo em matéria teatral e romanesca.)

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Na verdade nada falta no cenário para que o símile da cura psicanalítica se justifique. O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos (…). (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa e Egas Moniz…) A mistura fascinante de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de «inconsciência alegre» e negro presságio, que constitui o fundo do carácter português, está ligada a esse acto sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento.

 

Através de mitologias diversas. De historiadores ou poetas, esse acto sempre apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível, do milagroso, ou, num resumo de tudo isso, do providencial. É de uma lucidez e de uma sabedoria mais fundas que a de todas as explicações positivistas nesse sentimento que o português teve sempre de se ter garantido no seu ser nacional mais do que por simples habilidade e astúcia humana, por um poder outro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus.

Esta leitura popular do nosso destino colectivo exprime bem a relação histórica efectiva que mantemos connosco mesmos enquanto entidade nacional. Nela se reflecte a consciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma protecção absoluta que subtrai essa fragilidade às oscilações lamentáveis de todo o projecto humano sem a flecha da esperança a orientá-lo.

Esta conjugação de um complexo de inferioridade e superioridade nunca foi despoletada como conviria ao longo da nossa vida histórica e, por isso, misteriosamente nos corrói como raiz que é da relação irrealista que mantemos connosco mesmos.

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É por de mais claro que ambos cumprem uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade. Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a hora do seu nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se transformara em grande nação.

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Acontece, todavia, que mesmo na hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção. Nós éramos grandes, dessa grandeza que os outros de fora e por isso integra ou representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas éramos grandes longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda.

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Os Lusíadas recebem uma luz espectral e fulgurante quando lidos no contexto de uma grandeza que subterraneamente se sabe uma ficção ou, se se prefere, de uma ficção que se sabe desmedida mas precisa de ser clamada à face do mundo menos para que a oiçam do que para acreditar em si mesma.

Da nossa intrínseca e gloriosa ficção Os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema «épico» assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem?

 

Eduardo Lourenço in, Psicanálise mítica do destino português |O Labirinto da Saudade|Gradiva, 2000 

 

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