Ouvir para mim mesmo
Ultimamente tenho dialogado pelas páginas dos dias com George Steiner. Ele defende algo que considera perigoso: a revolução de hoje é a música em que acreditamos. O kitsch e o ruído organizado são uma constante no nosso mundo, sabemo-lo. O progresso, como eu o entendo, está longe do que é medido e quantificado - é uma qualificação crescente da qualidade. Não dizemos melhor de ano para ano: dizemos mais. É difícil escapar a esta culpa logorreica.
A afirmação de Steiner é tanto mais perigosa quanto se podia encontrar um torcionário dos campos de concentração nazi a cantarolar Schubert. É possível abusar politicamente da obra de Beethoven ou de Wagner. Não é novidade esta afinidade metafísica entre a sensibilidade artística e o apocalipse social, muitos escritores fizeram desta temática o seu filão.
Há na afirmação de Steiner uma confusão de valores extremamente profunda, aliás, assumida por ele. No entanto, para muitos seres humanos, alguns adágios constituem o que há de mais próximo com a experiência do absoluto. Sabemo-lo no mais íntimo de nós que só a música põe na sua pureza última o sentido da existência humana, quer dizer, só a música fala o que as palavras não dizem nem são capazes de dizer.
Para a tomada de consciência desta experiência de absoluto, Steiner formula a seguinte questão: “com que coisa no mundo se parece a música?”
Não sei.
Dos milhões de motivos possíveis para contrariar a arbitrariedade dos nossos percursos terrenos, simultaneamente imprevisíveis e inevitáveis, é muitas vezes a epifania da música que nos dá o sentimento de gratidão pela simples dádiva da vida.
No que toca à experiência de absoluto , dos muitos adágios que têm passado por aqui, acrescentaria mais dois que foram responsáveis por momentos de beleza estética e transcendência espiritual.
A escolha de juntar o pianista Artur Rubinstein ao compositor Frédéric Chopin, não é inocente. Ambos nasceram na Polónia e foram dois prodigiosos pianistas. O que surpreende nas interpretações de Rubinstein é a ausência de ênfase. Isto é: ele sabia encontrar para cada obra uma abordagem sem interpor o seu ego entre a música e quem a escuta. Justo: eis a palavra que o pode descrever com maior exactidão.
I
A escolha do primeiro Adágio recai sobre o segundo Andamento do Concerto para Piano e Orquestra nº 2, de Chopin. Feito para a alma romântica. Este concerto é de capital importância para compreender a personalidade de Chopin e a sua escrita musical. Na verdade, mal tinha atingido os vinte anos e a sua vida amorosa já era tumultuosa.
O concerto é dedicado a Constança. Sabemos
que era aluna de canto do Conservatório de Varsóvia e que foi o seu primeiro
amor. Todo o concerto é movido por este impulso apaixonado e parece ser construído
em torno deste Adágio, um dos mais belos de toda a literatura pianística
do Romantismo. Chopin procura aqui a expressão mais directa e pura da
intimidade. A melodia desenvolve-se de tal modo, que se eleva e paira no ar, como um
canto amoroso fascinado pela paixão, deixando-nos repletos de êxtase poético. Um dos momentos mais altos da música de Chopin.
II
Escolher dois adágios de repente sem pensar duas vezes, é tarefa inglória e ocupa uma impura terra de ninguém. Não hão-de faltar suplementos culturais com páginas por preencher, leitores genericamente pouco atarefados, e um concurso anual dos melhores adágios. Que seja, a segunda escolha em honra da companhia que me tem feito George Steiner, recai sobre o segundo andamento do Concerto para Piano e Orquestra, de Edward Grieg. O lirismo é difícil de igualar e faz desta obra uma pérola da música romântica. Possui um charme nórdico, de uma beleza surpreendente, originalmente apelativa, capaz de re-encantar a realidade e o presente. Um sonho sem palavras.
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