Como vamos viver sem ele?

                                                                                   


                                                           

    Eduardo Lourenço                                 

(…)

Nenhum povo (…) pode viver sem uma imagem ideal de si mesmo. Mas nós temos vivido sobretudo em função de uma imagem irrealista, o que não é a mesma coisa. Sempre no nosso horizonte de portugueses se perfilou como solução desesperada para obstáculos inexpugnáveis a fuga para céus mais propícios.

Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos. As nossas possibilidades são modestas, como modesto é o nosso lugar no concerto dos povos. 

Mas ninguém pode viver por nós a dificuldade e o esforço de uma promoção colectiva do máximo daquilo que adentro dessa modéstia somos capazes. Essa promoção passa por uma conversão cultural de fundo, susceptível de nos dotar de um olhar crítico sobre o que somos e fazemos, sem por isso destruir a confiança nas nossas naturais capacidades de criação autonomizada, dialogante como tem sido sempre, mas não sob a forma de uma adaptação mimética, oportunista, das criações alheias e da sua vigência de luxo entre nós, enquanto os problemas de base do País não recebem nem começo nem solução.

Nesse capítulo a carência da revolução de Abril tem sido quase absoluta. A consciencialização necessária de um povo amorfo e «desinteressado» politicamente como foi o nosso durante décadas operou-se apenas, e como superficialidade, no chamado plano «ideológico», mas um conformismo fatal como era de esperar num contexto de carências sócio-culturais tão denso como o nosso.

Tudo parecia dispor-se para enfim, após um longo período de convívio hipertrofiado e mistificado connosco mesmos, surgisse uma época de implacável e viril confronto com a nossa realidade nacional de um povo empobrecido, atrasado social e economicamente, com uma percentagem de analfabetismo única na Europa, com quase um terço da sua população obrigada a emigrar, imagem capaz de suscitar um sobressalto colectivo para lhe atenuar os traços mais intoleráveis.

Mas o que sucedeu, o que tem tendência a acentuar-se é a reconstituição de em moldes análogos da imagem «camoniana» de nós mesmos, do benfiquismo ingénuo mas nefasto com que nos contemplamos e nos descrevemos nos indestrutíveis discursos oficiais e, quando não basta, com a promoção eufórica e cara da nossa imagem exterior que em seguida reimportamos como se fosse de facto a dos outros sobre nós.

O estatuto democrático da imprensa portuguesa não alterou os hábitos de cinquenta e mais anos. Multiplicou apenas os seus pontos de aplicação. Em vez do encarecimento do tirano omnisciente, reina a bajulação avulsa dos caciques que entre si jogam aos dados nas costas do povo português os poderes e as benesses de que se instituíram herdeiros. A regra do jogo, talvez até mais eficaz que no antigo regime, é a da desdramatização de todos os problemas nacionais.

Uma democracia não tem problemas e nós somos uma democracia… Desapareceu mesmo do horizonte o sujeito de qualquer responsabilização séria pelo estado inalterável e, em vários aspectos, piorado, de um país que de uma vez por todas nós decidimos subtrair, pelos seus métodos gloriosos de uma dia, ao pouco exaltante ofício de o conhecer, descrever e julgar como ele é.

De uma maneira mais insidiosa, mas acaso mais corruptora do senso das realidades e da consciência do lugar que ocupamos no mundo (ou que não ocupamos) Portugal tornou-se de novo impensável e invisível a si mesmo. Só de uma maneira exterior, forçados por imperativos brutais de ordem catastrófica, consentimos, mas sempre sob a mais antiga maneira de ser nacional, a de «não cair de cu», consentimos em nos olharmos tais como somos realmente.

Não desmente esta análise o reflexo pícaro por excelência de uma «maledicência» quotidiana de café sobre nós mesmos. Quando não é o sintoma mesmo de uma degradação masoquista é um jogo que faz parte intrínseca do a-criticismo, do irrealismo de fundo de um povo que foi educado na crendice, no milagrismo, no messianismo de pacotilha, em suma, no hábito de uma vida pícara que durou séculos e que uma aristocracia indolente e ignara pôde entreter à custa de longínquos Brasis e Áfricas.

Mas o anedotário quotidiano tem também uma face positiva na medida em que traduz mesmo sob a forma suspeita que é sempre a sua – como forma de ócio imerecido e fácil fuga diante do real – a verdade de um imobilismo de alma ou de uma mobilidade sem objecto tão própria do nosso projecto de vida colectiva desde a época crepuscular em que deixámos de ser um povo de acção paralela ao verbo.

(…)

 

Eduardo Lourenço in, Psicanálise mítica do destino português | O Labirinto da Saudade| Gradiva, 2000

 

 

 

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