Sobre uma barca de Caronte
Estender o
olhar ao longo do horizonte; o pôr-do-sol amiúde a aquecer-nos a face, a sua
cor a colocar cada coisa no seu lugar de tranquilidade, comovermo-nos ao ponto
de sentir-mos o ar palpável, a sensação de nos libertamos do instante, do
momento fugitivo e efémero, e sentir o cheiro a um prenúncio de paz eterna. É
este o doce lenitivo para uma ideia de morte, o último poema das "4 Últimas Canções", de Richard Strauss. Talvez nunca se anunciou, se proclamou e cantou, num
estilo lírico-épico de uma ária de ópera - a nossa verdade primitiva - a vida
lançada ao silêncio infinitesimal do universo.
Já com mais
de oitenta anos, Richard Strauss ao ler as obras de um poeta prussiano (que não me
recordo o nome), deparou-se com Ao
Pôr-do-Sol, um poema lírico em que um casal de idosos contempla o
pôr-do-sol e pergunta: “É talvez a morte?”.
Strauss ficou abalado pelos versos que lhe lembraram o seu próprio casamento
longo e feliz com a sua mulher (que também era soprano). Ao Pôr-do-Sol é, apropriadamente, o último dos quatro poemas, com
as três primeiras canções a serem configuradas pelos poemas de Hermann Hesse. A
saber: Primavera, Setembro e Indo Dormir.
A ária começa
com uma representação orquestral vívida do pôr-do-sol; as flautas vibrantes
representam o par de cotovias do poema ascendendo ao céu como metáfora das
almas do casal de idosos. À medida que a música se desenrola a luz diminui, até
que a soprano pergunta: - “Isto é talvez
morte?” E a música desaparece ao som das flautas.
Ao lermos os
três poemas iniciais de Herman Hess, não encontramos neles o capricho de versos deleitosos, mas um escrito humano em que cada verso
parece fazer parte dos preparativos para a morte, e é difícil imaginar uma
despedida mais bonita, lúcida e desenganada, sem qualquer sinal de consolo
religioso à medida que a morte se aproxima, e com uma profunda apreciação do
mundo antes de partir.
Sabemos que o efeito do tempo é o de retificar
sem fim a perspectiva que temos dele. Sabemos também que o nosso estado de
humor condiciona a visão, mas gostaria que o meu último olhar quando descesse
ao Paraíso-Purgatório da memória para contemplar a vida, tivesse este carregado senso de melancolia, e este sentimento de paz eterna.
Ao pôr do sol,
atravessamos a tristeza e a alegria de
mãos dadas;
das nossas
andanças, vamos agora descansar
nesta terra
tranquila.
À nossa
volta, os vales curvam-se
como o sol
se põe.
Duas
cotovias sobem
sonhadoras
no ar leve.
Aproxima-te
e deixa-as voar.
Em breve
será hora de dormir.
Não nos
vamos perder
nesta
solidão.
Ó paz vasta
e tranquila,
tão profunda
no brilho da noite!
Quão cansados estamos de deambular -
Talvez isto seja
a morte?
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