Uma carta de amor




De Dostoiévski a Saul Bellow, passando pelos diários de Vergílio Ferreira, a forma epistolar na literatura, seja na forma de carta ou diário, sempre pretendeu constituir-se como um recurso que conferisse uma maior veracidade à narrativa. Uma forma que, por definição, estivesse fora de um mundo ficcional relevando e revelando uma narrativa confessional e confecionável de um eu. Que essa técnica seja adoptada à música, já é menos convencional e, pode dizer-se, por isso, menos planeada comercialmente. O facto de, E- Bow the Letter dos R.E.M. não ter sido concebida aparentemente como um hit da pop mainstream, confere-lhe a distinção e originalidade suficientes para se afirmar, para mim, como a melhor das suas canções.


                                                            

E-Bow the Letter lê-se como uma correspondência elaborada para fora do significado de uma conversa. Quer dizer, Michael Stipe escreveu uma carta – que nunca enviou - ao seu amigo River Phoenix que viria a morrer de insuficiência cardíaca causada pelo uso de drogas aos 23 anos.

Há aqui referências ao envelhecimento, ao medo metabolizado através das drogas, à derrota, e ao ambivalente significado de fama numa sensação de horror e beleza. Embora seja certamente uma canção triste e melancólica, é realmente bastante cativante, com versos que fluem através de uma melodia elegante. Noutras mãos, E-Bow The Letter podia ser escutada numa tonalidade carregada de negro, de luto, mas os arranjos musicais transportam uma componente de força que lhe confere grande emotividade. É uma canção inebriante, potente, suficientemente tangível ao ponto de nada fazer para nos alienar do seu drama central. E, por isso, mais real, aumentando, por assim dizer, a intensidade e a ansiedade da canção.

O dueto de Michael Stip com Patti Smith, que, à maneira de um quadro de Francis Bacon, culmina num desempenho que é ao mesmo tempo sedutor e aterrorizante.

 Wikipedicamente falando, E-Bow the Letter  é um dispositivo eletromagnético que induz vibração nas cordas de uma guitarra eléctrica capaz de criar um efeito semelhante a um violino e que “induz uma ressonância forçada”. 
É Reverberação. Prolonga o som pela vibração. Faz durar. Faz ficar. Ou melhor: não quer que algo ou “alguém” se vá. É este o fundo comum entre as palavras e o som, o significado desta impercetível metáfora do amor: tentar segurar.

Uma revibração mágica e doce que tenta alcançar sempre algo de novo; um sentimento, um fio de algo capaz de reviver.


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