O MONSTRO DE UM OLHO SÓ


A CÂMARA FOTOGRÁFICA:  
O MONSTRO DE UM OLHO SÓ


                                                            

                                             
                                                                 
Walter Benjamin é tido como um dos mais importantes teóricos e influente crítico literário do século XX, e foi nas palavras de Susan Sontag, “o mais importante e original crítico da fotografia”. No seu ensaio “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”, Benjamin analisa o declínio da autenticidade da obra de arte por efeito da técnica dos novos meios de produção e reprodução anunciando assim, um eventual - fim da arte enquanto arte estética - por uma arte política.

Benjamin afirma que foi esta arte política que permitiu aos meios técnicos servirem como expoentes para o mundo da arte, como por exemplo, a fotografia, o cinema e a televisão - ao englobarem a um tempo, o mundo comunicativo e o mundo da arte - como resultado de uma mentalidade capitalista em ascensão a partir do século XIX.

E demonstrou como a “reprodutibilidade técnica” causou a deterioração da aura”, que está ligada ao aqui e agora da obra de arte. Quer dizer, a partir do advento da reprodutibilidade técnica, o objecto artístico acaba por perder a sua “unicidade”, “singularidade” e “autenticidade” e, o seu valor de culto, é radicalmente alterado devido à tecnologia.

O seu conceito de “aura” é definido como “uma figura singular, composta por elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja”.

 Como acima referi, o conceito pressupõe três noções relativas à obra de arte: originalidade, autenticidade e unicidade, a que correspondem certos princípios. Em relação ao princípio do “hic et nunc” (aqui e agora), são considerados a presença física e o local de origem que garantem a unicidade da obra de arte, que também se relaciona com a duração material, a sua inserção na tradição e o seu testemunho histórico




Isto é: o conceito de aura diz respeito a uma existência única - da obra de arte.  

Por conseguinte, conclui-se que ela não existe como reprodução.



Walter Benjamin ao apresentar o poder que os efeitos que a reprodutibilidade técnica exercem sobre as obras de arte, identifica a entrada do processo industrial na produção artística, ao relacionar essa produção com o processo industrial das inovações técnicas dos meios comunicação, que possibilitaram a expansão da informação produzida em grande escala.

Walter Benjamin afirma que a obra de arte sempre foi passível de imitação e, portanto, reprodutível – mas; a partir do advento da reprodutibilidade técnica, o processo de “imitação” - ou reprodução - de uma obra de arte foi extremamente acelerado e aperfeiçoado, chegando à possibilidade de produzir cópias perfeitas e melhoradas das obras.

A partir desta reprodutibilidade em série e em massa, foi possível chegar uma parcela maior da população, criando deste modo uma integração entre os meios e a sociedade. Contudo, para além desta possibilidade de integração, também surgem problemas relativos à aura da obra de arte. Isto é: os mesmos meios que permitiram o estímulo exponencial desta “cópia do real”, acabaram por ser os principais causadores da perda da “aura” da obra de arte, que se tornou corriqueira e não algo - único -, digno de culto.


É neste contexto de industrialização da cultura de massas, mecanizada e atomizada, cuja máquina fotográfica representa o grande marco na Era da Reprodutibilidade Técnica, que surge o riso sarcástico de um Duchamp com um “ready made”.

De facto, o surgimento da máquina fotográfica, fez com que muitos artistas no início do século XX abandonassem a arte figurativa, ao constatar – erradamente - que uma lente mecânica consegue captar a realidade melhor do que qualquer pintor. Não só uma câmara não consegue ver o que um olho humano vê; em primeiro lugar, porque, possuímos visão binocular, o mesmo é dizer que o olho esquerdo e o olho direito não registam uma informação idêntica. O que significa, que não é partir de uma perspectiva, mas sim de duas, pelo menos, que o artista decide representar o que realmente vê. A perda, ou melhor, a abolição da  perspectiva única foi o ganho da verdade na arte.

Uma fotografia pode registar uma fracção de segundo do tempo captado por uma câmara; enquanto uma pintura de paisagem, retrato ou natureza morta pode parecer um momento cristalizado, mas é, de facto, o culminar de dias, semanas ou anos, passados a estudar, a reflectir, a pintar, sobre um tema.

Para se entender como representar um tema com total “exactidão”, e não com a precisão de uma vista universal de uma fotografia, mas exacta no sentido de captar uma atmosfera, símbolo ou alegoria, trata-se fundamentalmente de uma profunda concepção filosófica de como o artista olha: ver não é acreditar, é questionar.

Susan Sontag em “Ensaios sobre a Fotografia”, livro que lhe valeu o prestigiado prémio do National Book Critics Choice, também questiona o lado estético, moral e artístico da fotografia e o poder desmesurado que a imagem exerce no quotidiano. Sontag estabeleceu uma analogia entre o acto de fotografar e a agressão praticada com o uso de uma arma de fogo. Uma fantasia ligada ao uso da câmara fotográfica que se expressa no uso frequente de palavras como “carregar”, “apontar” e “disparar”. Sontag ao sugerir a semelhança imaginária entre uma máquina fotográfica e uma arma, afirma:

“Fotografar é transformar pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Fotografar alguém é um assassinato sublimado, assim como a câmara fotográfica é a sublimação do revólver. Fotografar é matar comodamente, como convém a uma época triste e amedrontada.”

Como sabemos, com a fotografia, procuramos resgatar à morte um atalho para a vida com o congelamento (criogenia) de uma imagem. Há aqui um lado místico, ou fáustico, por assim dizer, neste pacto que celebramos com a técnica para tornar a nossa memória e a nossa existência mais segura. Deste poder mágico da fotografia, que provoca “a suspensão do tempo”; sabemos que após o “som do disparo” do obturador fotográfico - pressionado por um simples e básico movimento de um dedo – significa, talvez, a expressão última exibida em todos os mecanismos técnicos, nos quais o mínimo gesto humano se desdobra em consequências espantosas e imprevisíveis.

Para concluir, queria voltar a Barthes, para quem a fotografia, ao contrário do barato senso comum, não chega sequer a ser portadora de uma mensagem, apenas apresenta, regista. Para ele, o spectator (observador) não interpreta, mas é confrontado. Contrariamente à arte, Barthes não reconhece que a fotografia seja simbólica, pois considera que ela apenas indica o real: “a fotografia, em si não diz nada, não significa nada, apenas indica.”


Na era do “apocalipse estável”, para utilizar a noção de Karl Kraus para definir a placidez do carácter da actual sociedade - em que o conceito de progresso deve ser fundado na ideia de catástrofe -, cuja bonomia e banalização do horror são factos que se equivalem com uma “regalada paz na alma”, a “aventura técnica-romântica com  a fotografia surge como uma “força demoníaca” que eterniza o instante, ao subtrai-lo ao fluxo natural do tempo, para convertê-lo na forma trivial de “spectrum” (espectro).

Barthes dá o seu exemplo deste “poder mortífero” da fotografia, enquanto experiência como spectrum, ou seja, enquanto objecto da fotografia por parte daquele que é fotografado: “sinto que a Fotografia cria o meu corpo ou o mortifica, a seu bel-prazer”. Acrescenta, “deixar-se fotografar é passar por essa ‘microexperiência da morte’ é tornar-se “verdadeiramente espectro”. 

Barthes ao ser dominado por esta sensação quando é obrigado a posar diante de uma máquina fotográfica, e quando contempla a sua própria imagem, refere: “o que vejo é que me tornei Todo-Imagem, isto é, a morte em pessoa”. E conclui: “a morte é o eidos da fotografia.”

                                                                          
By me: o monstro de um olho só (30x40, 2016)

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