O que pode a Arte IV



A Verdade da Verdade 


“A ciência é a análise espectral, a arte é a síntese da luz.”
- Karl Kraus 


                                                                 

              Imagem: Vincent Van Gogh, Um Par de Sapatos de Madeira, 1888


Num pequeno livro, mas de um poderoso alcance filosófico, intitulado “A Origem da obra de Arte” (Edições 70), Martin Heidegger mostra-nos o sentido último da Arte. A Verdade daquilo que a obra de Arte é. Ou melhor: Heidegger explica-nos a Arte a partir da Verdade, mas não mediante a noção tradicional que temos da Verdade platónica que se distingue do Belo e do Bem. Não, a Arte é interpretada a partir da instauração do sentido do Ser, isto é, “a essência da arte consiste na manifestação da verdade”.

Se, para Heidegger, "a verdade é a verdade do ser”, então a beleza não pode habitar ao lado da verdade, mas dentro dela.

                                                                           
créditos fotográficos da Babe

Como se sabe, para Heidegger, “a verdade é o desvelamento do ente enquanto tal” e, nesta perspectiva, o manifestar-se na obra de arte, é o manifestar-se da própria beleza. A beleza é este aparecer da verdade na obra. O belo pertence à verdade que acontece por si, isto é, o acontecimento que tem origem no seu próprio advento.”

Segundo Heidegger, o fazer-criativo” da obra de arte é como por-em-obra a verdade”, isto significa que a essência da arte é como uma constante origem da eclosão da verdade.

Por conseguinte, as profundas reflexões de Heidegger sobre o quadro de Van Gogh sobre um par de sapatos velhos e gastos nada têm de platónico, nenhum conhecimento prévio de Forma ou Ideia -; a realização da presenteidade” do quadro é o próprio quadro - no qual, podemos experienciar a realidade na sua essência. A presenteidade confere-lhe a sua própria auto-suficiência, autonomia e, por fim, autoridade.

Ele identifica esta presença e êxtase não-utilitário, na obra de arte e através dela, com a sua relação “desinteressada”. É esta relação desinteressada que temos com a arte, que faz dela não um objecto de dominação, mas de contemplação.

Tal como expressa o aforismo de Karl Kraus, uma perspectiva científica sobre o quadro de Van Gogh, levar-nos-ia à análise espectral da composição química da matéria da qual é feita os sapatos, das tintas, ou mesmo da historiografia do calçado em geral ou particular, mas o resultado de tal análise seria sempre uma abstração. E, apesar do conhecimento prático de quem usou estes sapatos ter um inestimável valor para a compreensão do quadro, continuava a ser conhecimento “interessado”.

Por isso, Heidegger salienta: “apenas a arte deixa-ser”. Apenas no quadro e através dele é que o par de sapatos obtém o seu “ser em-si” total e autónomo. Mesmo depois de o objecto ter deixado de constituir qualquer interesse científico ou utilidade prática, os sapatos serviriam unicamente “para deitar fora”. Para Heidegger, a Arte, é alegoria e símbolo, e apenas o quadro preserva e guarda a sua singularidade e presença viva. Por isso o símbolo tem um sentido absolutamente real na verdade que traz consigo.

Mais do que qualquer par de sapatos com que nos deparemos na vida real, é a obra de Van Gogh que nos comunica a “sapatidade” essencial, a “verdade do Ser”. A arte não é como em Platão, uma imitação do real. É o mais real.


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