Let me kiss you




“Beijos escritos não chegam ao destino, são bebidos pelos fantasmas durante o caminho.”
- Franz Kafka (Cartas a Milena)                    


Se para Kafka os meio de comunicação escritos, como as cartas, pela sua linguagem maneirista, são fantasmas que privam o mundo de realidade, fazendo-o parecer inapreensível, que dizer daquilo que é por natureza incorpóreo, como as imagens que alimentam os nossos desejos?


                                                                

É curioso como numa época em que podemos viver com a maior liberdade, em que os relacionamentos de um modo geral se tornam fluidos e incapazes de representar qualquer estabilidade minimamente coerente num universo de valores, continuamos a arrastar cadáveres emocionais e a trancarmo-nos em complexas prisões que fazem da nossa existência uma pista de obstáculos. Que fazemos então? “Fechamos os olhos/ e pensamos em alguém que admiramos fisicamente”. E suspiramos... como faz Morrissey.

A maior parte das nossas fantasias tornam-nos cegos. Falseiam o mundo e transformam-no num espelho dos nossos desejos, e “então abrimos os olhos/e vemos alguém que desprezamos fisicamente”.

Let me kiss you é a história de alguém que acredita que a única maneira de alcançar os seus sonhos, o porto seguro “de um lugar ao sol”, é através do amor que ela imagina estar em alguém da sua fantasia física.

As imagens dos nossos desejos amorosos acabam por ser simples reflexos das nossas focalizações interiores habituais e normalizadas, como se se tivessem tornado espelhos das nossas projecções, cujo testemunho visual não tem qualquer correspondência com a realidade.

Epistemologias à parte, e como diz a canção, se ao abrirmos os olhos continuarmos a ver na pessoa amada um monstro e não a beleza de um “coração aberto”, não deixa de ser dramático. Ou, não será mais dramático que sejamos nós que não mereçamos ter ao nosso lado quem daria tudo para ser amado?


O que entusiasma nesta canção é o potencial tóxico da nossa imaginação quando confrontada com o real, e o facto de que mesmo aquelas fantasias que consideramos como uma maior correspondência connosco poderem conduzir a resultados insatisfatórios. 


Há aqui um incentivo didático para que a nossa imaginação carregue atrás de si as silhuetas ou os fantasmas que melhor se adequem a nós. Mas essas sombras não são provas no tribunal da providência. Em todo o caso, Morrissey não condena nem absolve ninguém pelas suas fantasias. Mais parece exigir uma caixa de comentários, impelindo-nos a especular, a contrapor, e a sugerir finais alternativos para a nossa vida.


 Decerto que Let me kiss you é um parente invertido de “The More You Ignore Me, The Closer I Get”. É este lirismo subversivo com o seu quinhão de melancolia que me fascina em Morrissey. Uma balada arrebatadora.



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