A MONTANHA MÁGICA: FIM
HANS CASTORP
Imagem: Caminhante contemplado um mar de nevoeiro, Caspar David Friedrich, 1817/18.
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“Hans Castorp não era
um génio nem um idiota, e se evitamos o termo “mediano” na sua caracterização
não é, de modo algum, por razões que se prendem com a sua inteligência ou com a
simplicidade da sua pessoa, mas sim por respeito para com o seu destino, que,
assim nos julgamos inclinados a acreditar, comporta um determinado sentido
sobre-individual”
pág.44.
Não podia acabar esta série de textos sobre A Montanha Mágica sem dedicar particular
atenção ao personagem principal Hans Castorp. Se A Montanha Mágica, ou mesmo se a obra de Thomas Mann está fora de
moda, é porque continua a ser uma inimiga da cultura de massas, da baixa
cultura, aquilo a que ele chamava “a
crise da arte ocidental”. Com efeito, a cultura de massas entra na
procissão dos tristes sonâmbulos deste mundo.
Thomas Mann era um portento de reflexão, um profundo analista
psicológico e um estilista consumado na arte de bem escrever. Boa parte dos temas
abordados n’A Montanha Mágica, como a
relatividade do tempo, a transitoriedade e a subjectividade, surgiram das suas
próprias experiências durante a sua estadia em Davos aquando do internamento de
Katharina Mann, a sua mulher. De facto, Thomas Mann veio a constatar o “perigo” que representava para a
juventude as longas estadias na montanha. A potencialidade de tal perigo,
reside no facto de os jovens terem uma maior capacidade de adaptação, isto é,
de se acomodarem diante da vida. É partir daqui que nasce o personagem
principal. A “posição horizontal” a
que estavam sujeitos os doentes do sanatório, é já de si uma metáfora de um
estado letárgico e acrítico. Por conseguinte, este foi o impulso para a
construção do personagem principal.
“Romance de formação”, como já aqui referi, histórico,
filosófico, político, naturalista, simbólico, A Montanha Mágica é tudo isto e
mais ainda. Quero com isto dizer, que dentro destas categorias, é também um
romance de personagens elaborado com extremo rigor. Mas é um romance tão
maravilhoso em termos de narrativa, cenário, diálogo e acção dramática, que
pode parecer questionável estar aqui a abordá-lo especificamente como um
romance de personagens.
No entanto as personagens são tão ricamente desenvolvidas que
se constituem elas mesmas como símbolos. Daí o romance ser identificado dentro
da estética simbolista. Hans Castorp é um personagem modelado por um traço
dominante que o torna inconfundível – a indecisão. É um “jovem singelo” órfão de pai e mãe, que vivia em Hamburgo, onde se
tornaria um engenheiro naval, um “filho
enfermiço” da vida que vai passar 3 semanas ao Sanatório Internacional de
Berghof em visita ao primo, mas onde acaba por passar sete longos anos (de 1907
a 1914). A sua idade de 23 anos, é um símbolo da modernidade, assim como a sua
constituição tísica é também outro símbolo, o da burguesia europeia
fragilizada. No sanatório, todos os doentes devem registar, minuciosamente, a
sua temperatura num diário; a temperatura de Castorp é uma metáfora pela sua
falta da capacidade de decisão que não é nem saudável, nem doente - 37,6. O seu
nome, Hans, perfeitamente vulgar, é já de si outro símbolo da massa anónima.
Castorp é a representação romanceada da juventude alemã
durante a República de Weimar, cuja alma é disputada tanto Settembrini e
Naphta, duas forças ou símbolos que se defrontam: humanismo vs conservadorismo,
progresso vs religião. A personalidade “mediana”
de Hans Castorp, não resulta tanto de uma ausência de vontade para se impor no
mundo, mas mais concretamente, a de ser essencialmente órfão, isto é, de ser um
desenraizado. Castorp no sanatório desliga-se da “vida da planície”; do tempo; da carreira de engenheiro abortada e
da família. É atraído pela introspecção, pela doença e pela morte. Na atmosfera
decadente e frívola do sanatório, o jogo de cartas pelo qual fica obcecado - a
paciência -, torna-se um modo de vida. Deixa de usar relógio a partir do
momento em que este se parte, não se dando ao trabalho de o mandar arranjar.
Durante a sua estadia, seu tutor, tio-avô, morre, mas não vai ao seu funeral.
No final da sua estadia deixa de escrever cartas para a família e de as
receber. Os seus charutos preferidos desde Hamburgo, “Maria Mancini”, “vão
perdendo sabor” ao longo da sua estadia, indicando lenta e gradualmente o
seu afastamento da “vida na planície”,
charutos esses, que serão substituídos por outra marca que encontrou na
montanha – “de cor cinzenta”.
Apesar de não haver qualquer redenção no romance, a decorosa
nulidade de Hans Castorp é resgatada pela sua capacidade de se espantar e manifestar
curiosidade. E que é, na verdade, como refere Platão, a origem da filosofia. A
sua grandeza, se assim se pode dizer, está no espanto e na sua abertura diante das considerações elevadas da vida.
De facto, Castorp não perde a capacidade de se encantar. Afinal, mesmo a sua
irreflectida e indiferente decisão de se tornar um engenheiro naval, já
continha em si, algo de muito próprio: quando era criança, gostava de desenhar…
navios. Isto é, nessa escolha quase apática da sua profissão já estava presente
em si uma inclinação estética.
O título, “A Montanha Mágica”, é o primeiro grande
símbolo do romance que Thomas Mann vai buscar à “Origem da Tragédia” de Nietzsche:
“Eis que A Montanha
Mágica olímpica se abre perante nós, revelando-nos as suas raízes. Os Gregos
conheciam e sentiam os medos e os horrores da existência; para serem capazes de
viver tiveram de gerar em sonho os brilhantes olímpicos e interpor esse mundo
entre si próprios e esses horrores.” Pág. 35
No final do romance, Hans Castorp ao ouvir “A Tília”, um lied de Schubert, compreende que é a morte que se encontra por
detrás de tão imponente beleza. Com efeito, a Montanha, simboliza a condição do
homem perante a morte; “a implacável
Moira”, “ como Nietzsche lhe chama, que reina sobre todos os homens.
Nascida da Noite e do Caos, a Moira ou Destino, acima
de todas as divindades, submete-as ao seu poder. Cego e inexorável, o Destino, lá vai fabricando, tecendo e cortando
o fio da vida fazendo uso da Roda Sorte.
Que falta cometeu Hans Castorp para que a Moira ou Destino implacável determine o seu caminho? Não foi por sucumbir ao
monstro do tédio e à sua exasperação? Não. Castorp perde o encanto d’A Montanha Mágica quando as notícias
devastadoras da Primeira Guerra Mundial o começaram a penetrar directamente,
sacudindo-o e enchendo-o com o seu cheiro a enxofre:
Castorp “viu que o
encanto estava quebrado, viu-se salvo, liberto – não por sua própria
iniciativa, como teve de admitir para sua vergonha, mas por acção de forças
elementares vindas de fora, para as quais a expulsão e libertação produzidas
eram perfeitamente secundárias” (pág. 811).
Não, a sua libertação não foi voluntária, a expulsão pelo
Destino foi a sua punição. A última imagem que temos de Castorp, é diluída no
meio da lama e da chuva, dos clarões de fogo dos canhões “rasgando os céus sombrios, estrondos sucessivos que saturam, com
furor, o ar húmido, silvos lancinantes, uivos furiosos e infernais que
dilaceram o firmamento, deixando um rasto de estilhaços e fragmentos, de
explosões e labaredas, de gritos e gemidos, de clarinadas que ameaçam
desintegrar-se e rufos de tambor cada vez mais fortes, mais altos, mais
ensurdecedores…” (pág.812).
Ali fica a massa anónima dos soldados, estendidos no chão, os
rostos afundados na lama, imóveis para sempre.
No final, assim como o viandante de Caspar David Friedrich da
imagem, sabemos se Castorp consegue alcançar o mais elevado ponto do mundo
material, erguendo-se acima das suas limitações, gozando uma nova sensação de
liberdade para além das considerações materiais e que é apenas acessível ao
espirito e à mente? Nada sabemos. Morreu na Grande Guerra? Nada sabemos. Hans
Castorp diluiu-se no Mal do Tempo.
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