MONTANHA MÁGICA REVISITED




1º tag.

                                                               


“A errância, pela qual o homem atravessa, não é algo semelhante a uma fossa que acompanha o homem e na qual ele de vez em quando cai, mas a errância pertence à estrutura interna do Dasein, na qual o homem histórico está situado.”

 - Martin Heidegger



A literatura, é coisa de sonhadores. É sabermo-nos dentro de uma história, ou com a História, à sua mercê… A Montanha Mágica é um dos meus livros de referência. É um romance que leva sobre si o peso da história – fixa a narrativa num período em que o sonambulismo grassava na Europa antes da Primeira Guerra Mundial. É “o” grande romance filosófico do Século XX. Li-o a primeira vez a partir da tradução inglesa na edição Livros do Brasil da magnífica Colecção dois Mundos.

Em 2009 a Dom Quixote reeditou o livro, desta vez com a tradução directa do alemão por Gilda Lopes de Encarnação. Feitas as contas à fidelidade ao texto original, são mais 74 páginas. É outro livro. Reli-o uns anos mais tarde, na infeliz coincidência com o tempo histórico: aquando da eclosão da guerra civil na Síria, com a consequente tragédia migratória, e a procrastinação das decisões dos líderes europeus face à catástrofe. A Europa, como sabemos, tornou-se um lugar habitado por sonâmbulos e o mar do mediterrâneo um lugar habitado por mortos. “O Hamlet da Europa agora olha para milhões de fantasmas”, escreveu Paul Valery. De facto, Elsinore está em toda parte. Também Hamlet olhou para crânios e procrastinando fez conversas com fantasmas dentro das paredes do seu castelo.

Assim é Hans Castorp, o personagem principal d’A Montanha Mágica. Também ele aguarda, decide não decidir, se é melhor ser ou não ser, enquanto escuta os seus espíritos assistentes; o liberal Settembrini, e o conservador Naphta. No fundo, Castorp também pesa os crânios na palma da mão enquanto os impulsos do Tempo estão acima das suas alturas, perdoai-me a metáfora, quer dizer, das suas capacidades.

Mas A Montanha Mágica não é apenas Shakespeare, com o “sonho” de fundo através de uma longa “noite de verão", o encanto de ilusões e de sonâmbulos. É um despertar através de um conto de inverno também. Desperta-nos para o nocturno europeu, quer dizer, para as tonalidades sombrias que nos habitam interiormente, como o medo, a angústia, o nada, a morte, tendo como horizonte o Tempo. A Montanha Mágica é, por definição, o romance do Tempo. Padecemos do Tempo, é condição humana. 

N’A Montanha Mágica também encontramos o amor e a alegria, mas mais do que isso, é a interdependência da “finitude” humana e os seus momentos de negatividade que consiste em gerar no ser humano, o seu ser-aí, diria Heidegger. Somente a partir daqui ocorre a verdadeira mudança, quando se é tocado no nosso ser pelo apelo do Ser.

A serenidade d'A Montanha Mágica, para utilizar ainda um termo heidggeriano, repousa sobre um difícil equilíbrio (des) harmonioso  de dois universos incompatíveis, isto é, o drama intelectual assume o primeiro plano num confronto de ideias entre religião e o conservadorismo, o liberalismo e o hedonismo, ao mesmo tempo que disserta sobre o significado da cultura, ou da arte ocidental. Na verdade, a arte é um tema que atravessa toda a obra de Thomas Mann: a afinidade metafísica entre a o desenvolvimento da sensibilidade artística e o apocalipse social.

É neste difícil equilíbrio que vagamos à deriva num mar de sentimentos doces e melancólicos. Nós somos o que lemos, diz-se, e eu, não sei se sou alguma coisa deste Hans Castorp. Talvez seja, pelo facto de ser um bildungsroman. Em todo o caso, conhecer Hanz Castorp foi uma experiência vital, um quentinho que ficou, na estante dos livros, ao lado de todos os outros amigos.



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