Herberto Helder Revisited


                                                           



É amargo o coração do poema.

A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,

em baixo a outra mão

mexe num charco branco. Feridas que abrem,

reabrem, cose-as a noite, recose-as

com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára

de mão a mão salgada, entre os olhos,

nos alvéolos da boca.

O sangue que se move nas vozes magnificando

o escuro atrás das coisas,

os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos

que escreves

entre os meteoros. Cose-te: brilhas

nas cicatrizes. Só essa mão que mexes

ao alto e a outra mão que brancamente

trabalha

nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício

de elegância bárbara. Até que sentado ao meio

negro da obra morras

de luz compacta.

Numa radiação de hélio rebentes pela sombria

violência

dos núcleos loucos da alma.   


Herberto Helder |Última Ciência, 1988 | Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.  




Não há um mapa para a viagem da poesia de Herberto Helder. Supor que tal mapa existe é perdermo-nos como viajantes nela. É um poeta de acesso difícil, e não apenas por escrever poesia que exige muito da sua leitura, mas porque ele próprio cobriu e preservou intransigentemente a sua poesia pela força do silêncio. Por isso, desde logo, qualquer interpretação de um poema está sujeita ao fracasso.

A sua galáxia de metáforas musicalmente fosforescentes e opacas, articuladas pelas suas pulsões de vida e de morte bifurcam o significado de qualquer símbolo que possamos encontrar. Mesmo as correspondências óbvias ou misteriosas que a alegoria e o símbolo suscitam estão-nos vedadas, tornando impossível a sua “leitura plana”, encerrando o poema dentro de si mesmo, obscuro, inalcançável. O seu mundo é absoluta e provocantemente poético, coberto por um rosto de palavras capaz de silenciar a palavra criminosa da tagarelice.

Deste poema, podemos dizer que encontramos no reflexo de um espelho a “Última Ciência” de existir e que a vida se contempla nos seus extremos:
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela/ em baixo a outra mão/ mexe num charco branco.”

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