A MONTANHA MÁGICA REVISITED VI




“A MÚSICA É POLITICAMENTE SUSPEITA”

Ludovico Settembrini


                                                                      


A imagem é de uma pintura de Heinrich Fueger, com Prometeu a trazer o fogo à humanidade (1817).




“ – Bravo! – exclamou Settembrini. – Bravo, tenente!

Acabou de definir na perfeição um aspecto indubitavelmente ético da natureza da música: pela sua capacidade particularmente dinâmica de medir a passagem do tempo, ela consegue dotá-lo de valor e de espírito vivo e crítico. A música desperta o tempo e desperta-nos para a sua mais fina fruição, a música desperta…Nesta perspectiva podemos afirmar que é ética.”

A arte é ética na medida em que desperta. Mas o que sucede quando actua em sentido contrário? Quando entorpece, anestesia e se ergue como barreira à actividade e ao progresso? Também disso é capaz a música, também ela consegue exercer perfeitamente os efeitos da droga. Uma influência diabólica, meus senhores! A droga é obra do diabo, a droga só produz apatia, obstinação, inacção e torpor servil…Há qualquer coisa de duvidoso na música, meus amigos. Continuo convicto da sua natureza ambígua. Não exagero de modo algum ao considerá-la politicamente suspeita.” (pág.135).


Este excerto da Montanha Mágica é proferido pelo personagem Settembrini, a quem Thomas Mann chama, com uma certa ironia e desdém e descreve-o como “o literato da civilização”, isto é, um intelectual.


Thomas Mann foi um helénico, um goethiano e um herdeiro da tradição idealista e romântica alemã. Foi um clássico nos tempos modernos, marcados por acontecimentos profundamente revolucionários e devastadores para milhões de pessoas –, a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a Revolução Bolchevique de 1917, o comunismo, a queda dos impérios, a crise do liberalismo democrático e a ascensão do nazismo. Como se sabe, foi um dos principais autores modernos, e a sua obra reflecte de forma muito particular o espírito do seu tempo. As suas personagens apresentam um realismo anímico preciso e de peculiar minúcia e particularidade.

Se Hans Castorp corresponde a uma personagem modelada ou redonda, quer dizer, um indivíduo de condições anímicas complicadas, indeciso, em constante mudança, que tudo experimenta, desde o exoterismo à dissecação da alma com o doutor Krokowski, razão pela qual a sua alma é disputada por duas forças opostas, já Settembrini é um personagem plasmado linearmente do princípio ao fim: é um maçon, escritor e erudito iluminista, que advoga os princípios democráticos, irredutível no seu ponto de vista, ainda que esbarre em constantes aporias desmontadas por Naphta. Settembrini representa o ideal do Iluminismo – o progresso.

Apesar de cortês, elegante e refinado nos seus modos, as suas desbotadas e pruridas vestes conferem-lhe uma aparência de desleixo e um pouco ridícula, tanto que, Castorp, a primeira vez que o vê, o toma por um tocador de realejo. Dotado de uma linguagem “plástica”, como ele próprio define, tende a resvalar para a retórica, defendendo uma ética dos valores burgueses e do trabalho. Settembrini compara-se a Prometeu, o filho dos titãs que roubou o fogo a Hefesto e as artes a Atena. Porém, se atendermos não só a Protágoras de Platão, mas também a Hesíodo: Prometeu e Pandora são indissociáveis. Na verdade, o poder divino do fogo e das artes oferecido por Prometeu, só fez com que os homens se deixassem conduzir pela Hibrys - pela desmesura.

O que a mitologia de Prometeu põe em cena, é a definição perfeitamente moderna, de uma espécie cuja liberdade e criatividade são fundamentalmente anti-naturais e anti-cósmicas. Isto é: o homem prometeico é homem da técnica, aquele que é capaz de inventar sem parar, de fabricar os artifícios susceptíveis de um dia se libertarem de todas as leis naturais. Desde que a humanidade, quer dizer - desde que o humanismo de Settembrini é dotada de artes e ciência - a espécie humana é a única, entre os mortais, capaz de Hybris, a única que consegue ao mesmo tempo desafiar os deuses e correr o risco, não só de se auto destruir, como destruir o seu habitat- a natureza. O fracasso é o reverso da liberdade humana quando nos coloca em situações limite.

A Montanha Mágica é um romance sobre o fim de uma sociedade burguesa defendida pelos ideias de progresso de Settembrini, cujo epílogo é o deflagrar da guerra. A Primeira Guerra Mundial trouxe definitivamente à luz o facto de que a ideia burguesa de progresso nada mais tinha a opor aos poderes destruidores da máquina de guerra. O mal-estar provocado pela civilização e pela técnica, assim como a desconfiança em relação ao iluminismo e ao racionalismo, marcam o espírito desta época. Que  tenhamos dado um passo atrás, e que o termo “Civilização”, associado à expansão, ao utilitarismo e à urbanidade, já trazia consigo a profecia da decadência, não constitui surpresa para ninguém.


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