A MONTANHA MÁGICA IV




A NOITE DE WALPURGIS


                                                               


À margem: assim como os andamentos que constituem uma sinfonia, os posts dedicados à releitura d’A Montanha resultam da importância de cada parte que constitui o romance, de cada capítulo, de cada tema e de cada personagem, e menos da enfastiada síntese ao jeito de uma recensão do tipo jornalística. 

7 Meses após Hans Castorp ter dado entrada no Sanatório Internacional de Berghof, as ondas do Tempo no seu eterno marulhar trouxeram o Carnaval. Este capítulo dedicado ao carnaval, alude à montanha das bruxas de Fausto, de Goethe, daí o título “ A Noite de Walpurgis”. É nesta famosa noite que Hans Castorp se inicia nas artes do amor.

Castorp é órfão desde os 7 anos de idade e, na adolescência, viveu uma paixão homoerótica por um colega de escola, Przibislaw Hippe. No Sanatório Castorp apaixona-se por Clawdia Chautchat, e este amor faz renascer essa paixão reprimida e todo o aspecto físico de Clawdia faz recordar Hippe. Esta paixão dupla produz em Castorp os sintomas da tuberculose... Que o amor-paixão seja visto como uma doença, como tuberculose, é a convincente efabulação de Thomas Mann (reflexo da sua própria homossexualidade reprimida, cuja expressão artística estará irremediavelmente ligada à "Morte em Veneza").

Na Noite de Walpurgis, Castorp atreve-se a falar pela primeira vez com esta bela mulher russa por quem estava perdidamente apaixonado, embora, não tivesse trocado com ela mais do que um cumprimento cortês, dito em francês  e que, como se sabe, é a língua franca dos amantes, o que lhe fez disparar a temperatura para 38 graus. E assim, Castorp acaba por prolongar a sua estadia no sanatório também por causa da presença de Clawdia Chauchat.


Durante o jantar na Noite de Walpurgis, Settembrini o mação pedagogo de Castorp, diz-lhe que Clawdia é “Lillith”, a primeira mulher de Adão. Se Eva, a segunda mulher, foi forjada de uma costela que Deus retirou do homem, um subproduto, se assim se pode dizer, já Lillith, foi criada do mesmo barro que Adão, o que significa, que estava no mesmo patamar da criação, isto é, à altura do homem. O resto é conhecido: Lilith, foi posteriormente demonizada por disputar a sua igualdade. O simples facto de não querer ficar “sempre por baixo do homem durante as relações sexuais”, é já um evidente protesto contra o sistema patriarcal. Esta inversão de posição é simbólica para a cena que se segue.

Naquele ambiente cerimonial na “Noite de Walpurgis, o parêntese carnavalesco, descontraído e informal regado a champagne, propiciam em Castorp a ousadia de responder ao “tu” que madame Chautchat lhe dirige e, responde igualmente na primeira pessoa ao trata-la por Clawdia. Castorp corteja-a ajoelhado; madame Chauchat prevê-lhe “uma curva de febre muito má para essa noite”, e sai. No dia seguinte, partirá para o Daguestão na Rússia, a terra de residência do marido. Castorp, na posição em que estava, assim ficou: de joelhos. 

Apesar d’A Montanha Mágica ser uma história de amores e desamores, não partilha o preconceito romântico de que o amor é sempre a única resposta. Como sabemos, a plena realização amorosa não é a livre expressão de desejos individuais, é uma negociação com os caprichos do acaso, colide com os desejos de terceiros, e as dinâmicas destas consequências.


A grande lição que a pedagogia de Thomas Mann nos impõe é esta: mesmo que, à luz do olho divino (ou literário), todos sejamos especiais, o nosso dever principal é reconciliarmo-nos com a possibilidade de apenas sermos vulgares e ridículos. Fora da generosidade artificial da Literatura, as leis da natureza não garantem o direito à compensação das aspirações amorosas quando as oportunidades nos surgem.

Thomas Mann, ao descrever a partida de Clawdia Chauchat, diz que ela foi transitória, temporária, em itálico. Também nós nos deveríamos referir em itálico a essa parcela do Tempo a que chamos futuro. As expectativas, os desejos, tudo aquilo em que depositamos esperança de se realizar, são votos piedosos, trata-se de fé, destinada a realizar-se ou não, de acordo com o acaso, da sorte aos dados, ou, do voo das aves.




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