Fidelio I




“A minha força é a do dever que me inspira a constância dos laços do amor.”
- Leonora

Do lado de cá das trincheiras é necessário hastear bem alto esta bandeira: há em Beethoven momentos em que tocar lindamente pode ser absolutamente anti-musical.

Isto é: muitos dos que deploram a frivolidade da música de ouvido fácil – música ambiente e de entretenimento - composta expressamente para ser ouvida em lounges-café, bares, restaurantes, elevadores e outros, talvez se conformem em saber que o conceito não nasceu nas esplanadas de Bicanca. A música ambiente é tão velha como a própria música. Porém, grande parte daqueles que a deploram são os primeiros a renderem-se à agradável “Música de Jantar” de um Telemann, ou de um Haydn e de um Mozart, que compunham música para idênticos fins (que com frequência ultrapassavam o que lhes tinha sido encomendado, diga-se). No período barroco e grande parte do período clássico, era vulgar os compositores escreverem música especificamente para ser tocada enquanto se conversava, se comia e bebia – enquanto se fazia tudo menos escutá-la.

Ora, a música de Beethoven é radicalmente outra. Na sua obra, a emoção, o dramatismo, o virtuosismo e o intelecto combinam-se inextricavelmente e atingem um nível nunca antes conseguido. O realismo emocional, por vezes explosivo, fez dele o primeiro compositor a incorporar frequentemente um elemento de luta, ou mesmo de agressividade, como elemento de expressão.

Este elemento de luta entronca em Fidélio como meu ícone fixo no lugar mais elevado do panteão estético operático. A acção de Fidélio passa-se numa prisão em Espanha, no século XVIII, e é inspirada em factos verídicos. O herói Florestan, é um jovem nobre que foi preso por defender os ideais de liberdade. A mulher de Florestan, Leonora, tem como missão libertar o marido. Para isso faz-se passar por um homem, Fidélio, e consegue emprego como carcereiro na prisão. O drama insere-se nos ideais de liberdade que Beethoven sempre hasteou.

A actual abertura de Fidélio é conhecida como “Abertura nº 3 de Leonora”, devido às sucessivas correcções, pois esse era o nome que Beethoven queria inicialmente dar à ópera - “Leonora, ou o amor conjugal”. Em consequência, ganhámos três obras-primas. Tal como em todas as outras formas musicais que abordou, Beethoven conferiu à ópera uma amplitude emocional sem precedentes.


Como analisar a monumentalidade de Leonora III? Diria que o traço autoral de Beethoven para as aberturas são os seus acordes imperiosos, quase no limite da brutalidade, seguidos de uma paragem brusca, para darem lugar aos compassos introdutórios.

Assim acontece com Leonora. Após o impulso inicial de uma “voz” musicalmente intensa, revelador da identidade musical de Beethoven, sobrevem-lhe então a sua típica frase envolta numa clama etérea. Os compassos introdutórios iniciam-se à maneira de um levantar de cortina, seguido de uma extensa exposição antes do tema principal.

Com o tema, de uma energia transbordante, materializa-se todo o ímpeto da mulher que se lança na arriscada aventura para libertar o seu amor. E por este ímpeto somos acometidos abrigando em nós novas ambições e sentimentos. Como que movidos por uma espécie de impulso rítmico a que os violinos só vêm reforçar o tom selvagem e desenfreado. É um clima repleto de trepidações apaixonadas. Percebemos então que esta criação de Beethoven, para além da sua natureza política, com conotações libertárias, de pendor feminista, Fidélio é um elogio ao amor.


Escolhi o compositor e maestro Leonard Bernstein por um motivo simples: há o Leonard Bernstein, e há os outros.

                                                           

Nota: Dedico este post ao blog https://descaminhoavolta.blogspot.com/


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