Ciclo Schubert I

Improviso 3


Na verdade, nenhum dos compositores da chamada Trindade Vienense, Haydn, Mozart e Beethoven, nasceu em Viena. Franz Schubert foi o primeiro grande compositor nascido em Viena. Cidade que, com excepção de algumas poucas ocasiões, nunca abandonou uma vez nascido em 1797 até à morte precoce, aos 31 anos, em 1828.  

A circunstância assinalável reside no facto de serem estes os anos em que  Beethoven também residiu em Viena. Por isso, houve pelo menos 20 anos em que os dois músicos viveram na mesma cidade e, apesar de Schubert ter venerado Beethoven, o dado curioso é que nunca tentou nenhuma aproximação ao embaixador universal. O motivo é simples. Beethoven e Schubert tinham amizades diferentes e pertenciam a círculos de diferentes significados sociais, culturais e políticos.  

Escolhi o Improviso nº 3 para iniciar este ciclo de Schubert, porque o conjunto dos quatro improvisos do Opus 90 ao qual pertence, são  “pequenas peças” mas de grande sofisticação e elegância.  Fazem parte das mais belas obras-primas do Romantismo. O lirismo delicado e a capacidade de expressar a profundidade dos sentimentos humanos atingem a zona mais recôndita do nosso espírito.

Os improvisos constituem uma série de oito peças para piano solo que foram publicadas em dois grupos de quatro improvisos cada: o primeiro foi publicado em vida do compositor, e o segundo foi publicado postumamente. Os improvisos correspondem à fase final da sua vida em que já era um homem alquebrado, isolado do mundo e votado à infelicidade. Dependente do álcool, colocou toda a energia que lhe restava na criação incessante de novas peças, cada qual mais inspirada que as anteriores. Em cada Lied – ou em grande parte deles – a morte imiscui-se na melodia, nas harmonias, na escrita. Morre um ano após a morte de Beethoven, de acordo com o seu desejo, foi enterrado junto do seu ídolo, que tanto tinha venerado.  

O Improviso enquanto “forma”, é caracterizado por ser livre, quase uma improvisação. Com tudo o que possa parecer de excessivo, podemos comparar esta "forma" com a associação livre de ideias que é utilizada como método analítico na psicanálise. É a verdade que emerge das sombras para ganhar visibilidade. Esta expressão de uma disposição interior sem o filtro da razão, é o elemento mais marcante do espirito romântico. 

Este Improviso é um tema com variações. A referência mais nobre que podemos encontrar nas variações seguem o padrão clássico utilizado e desenvolvido pelo seu venerado mestre - isto é, os elementos incluem ornamentações e modulações antes de um retorno ao tema principal para a variação final – tal como Beethoven fez nas Variações Diabelli.  

A técnica deste Improviso é extremamente complexa. A mesma mão realiza duas coisas diferentes simultaneamente. Se reparamos com especial atenção, a mão direita toma a seu cargo o trabalho quase por inteiro ao produzir duas situações musicais diferentes; uma linha de canto (melodia) e uma parte de acompanhamento (arpejo); enquanto a mão esquerda vai acrescentando uma pequena parcela de drama nesta peça aparentemente simples, mas uma das mais belas obras que conheço para piano solo. 

Aqui chegados, podemos então abandonar-nos à arte superior de Schubert, a este Lied (Canção, Romance, sem palavras) que expressa a sua mais elevada poesia. É um compositor da alma, dos sentimentos profundos, da luz e das sombras sentimentais. A sua música é do íntimo e ao íntimo de cada ouvinte deve retornar. A sobriedade deste Improviso repousa no equilíbrio da harmonia de um efeito dramático notável. A beleza está no fraseado pianístico do tema ao carregar um efeito emocional ambíguo; uma tonalidade tão quente quanto melancólica. Das profundezas do ser eleva-se um canto delicado, e no entanto, capaz de atingir o cume dos sentimentos mais doces e melancólicos. 

Escolhi a figura lendária do piano Vladimir Horowitz, por ter a sorte desta gravação estar disponível no Youtube e, essencialmente, pela oportunidade de a posteridade lhe prestar esta minúscula homenagem. Martha Argerich afirmou com admiração, que ele era "o melhor que podia acontecer ao piano". 


                                                          

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