O humanismo explicado às criancinhas




                                                           
(A Babe, créditos meus)


[...]

P. As humanidades revelaram-se incapazes de humanizar? Continua a acreditar que a educação literária encoraja paradoxalmente a crueldade e a barbárie?

G. S. O nazismo, o comunismo, o estalinismo convenceram-me do seguinte paradoxo fundamental: a cultura livresca – a bookishness, para empregar uma velha palavra inglesa, que diz bem aquilo que quer dizer -, a cultura literária mais elevada, todas as técnicas da propaganda e da formação literárias não só acompanham a bestialidade, a opressão e o despotismo, como, sob certos aspectos, o encorajam. Ao longo de toda a nossa vida, somos formados pela abstracção, pelo fictício, e acabamos por adquirir um certo poder – um pretenso poder – de nos identificarmos com o fictício, de o ensinarmos, de o aprofundarmos (quantos filhos tem Lady Macbeth?). Depois, saímos à rua e ouvimos um grito, que possui uma estranha irrealidade. A imagem que quero  desenvolver é a seguinte: fui ver um filme excelente na primeira sessão da tarde. Está um sol esplendoroso. Quando saio do cinema e dou com a realidade iluminada, tenho muitas vezes uma sensação de náusea, de desequilíbrio nauseado. Preciso de alguns segundos, de alguns minutos, algumas vezes de um pouco mais, antes de voltar a sintonizar-me com a realidade.

P. Ao sair da caverna de Platão?

G.S. Mas com mais força, porque, de certa maneira muito curiosa, o cinema é um espectáculo da noite. Porque é que frequentar um cinema de dia tem qualquer coisa de especialmente perturbante? Retomo ao assunto, referindo-me a uma versão alargada da minha experiência: passo o dia todo numa sala, rodeado de estudantes, sentados à volta da mesa do meu seminário de Genebra. Tentamos fazer alguma coisa com o problema de extrema brevidade do papel, que corresponde a menos de noventa versos, de Cordélia no Rei Lear. Ninguém acredita que seja possível antes de contar os versos. Ou, então, ao grandes silêncios da literatura: personagens que passam e não dizem nada – de Ésquilo a Dostoievski – ou mal chegam a dizer algumas palavras. Ou o idiota no final de Boris Godounov: canta duas notas que dão a volta ao mundo no seu desespero e no seu horror. Os estudantes foram receptivos, e nós também. Sabemos de cor tudo isso, a maneira como nos enche de satisfação. Depois, acabou-se. Saímos para rua e vemos a manchete nos jornais: «Um milhão de Mortos no Ruanda». Não é que fiquemos simplesmente como que tolhidos frente aos horrores constantes do século; é que eles não entram sequer na nossa imaginação.

No que me diz respeito, a viragem deu-se com Pol Pot. Na época, muito poucos estavam ao corrente de Auschwittz. É verdade, havia patifes que sabiam, filhos da puta que sabiam e que não acreditavam, mas o seu número era insignificante. O segredo dos nazis na matéria foi de uma eficácia prodigiosa. A rádio e a televisão agora faziam-se eco das carnificinas no momento em que elas se desenrolavam e diziam-nos que Pol Pot estava em vias de enterrar vivos cem mil homens, mulheres e crianças. Sou absolutamente incapaz de atribuir um sentido às palavras «enterrar vivo um homem, uma mulher ou uma criança». Mas cem mil! Nesse momento, estive à beira de enlouquecer de raiva impotente. Obcecava-me a esperança de ouvir a Rússia e a América dizerem: « Não sabemos quem está errado nem quem tem razão no meio deste incrível desastre geopolítico, mas, quarenta e cinco anos depois do Holocausto ou depois do Gulag, não podemos fazer a barba de manhã, olharmo-nos ao espelho, quando sabemos que cem mil pessoas estão a ser enterradas vivas; a lâmina não pode desempenhar a sua função na nossa pele. Não há mulher que seja capaz de continuar a maquilhar-se podendo considerar-se um ser humano».

[...]


Entrevista a George Steiner com Ronald A. Sharp. Os Logocratas, Relógio D`Água Editores, trad. MIguel Serras Pereira, 2003.


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