Do amor intocado




À escolha clássica: “A Morte em Veneza”, o livro ou o filme? Gosto tanto do livro do Thomas Mann como do filme do Luchino Visconti. Se no filme está ausente o estilo narrativo (algo que não é filmável), os monólogos interiores e a capacidade subjectiva de imaginar, acresce-lhe a importância da obra de Mahler. Com efeito, Gustav Mahler foi o mais importante compositor pós-moderno, e um dos melhores não só do seu tempo, mas também de todo o século XX. Aos apontamentos beethovianos enriquecedores dos ambientes,  a 5ª Sinfonia de Mahler vem ocupar quase por inteiro o filme e a memória que tenho dele. Se o Aschenbach escritor de Thomas Mann é substituído pelo Aschenbach compositor de Visconti, a vivência do drama interior - da mesma verdade sentida - é repercutida no ambiente sonoro de Mahler.

 A viagem de Aschenbach a Veneza baseia-se na viagem que Thomas Mann fez com a mulher, também a Veneza, altura em que viu o jovem Tadzio (bastante diferente do actor que dá corpo ao personagem no filme). Nessa viagem Thomas Mann soube que Mahler havia falecido, o que o perturbou bastante. Como tributo, serve-se de Mahler como modelo de construção de Aschenbach (Aschenbach também se chama Gustav), e Visconti pretende ser mais fiel na cópia da presença real em que ambos se fixaram ao atribuir-lhe o papel de músico. 


A paixão de Aschenbach pelo jovem Tadzio, tem reminiscências platónicas; na página 71 do livro de Thomas Mann, o compositor enceta um diálogo interior entre Sócrates e Fedro, e consegue perceber a impossibilidade de materializar o seu ideal de beleza que é Tadzio: assim que tocasse nele, enquanto objecto do seu ideal de beleza e que representa a perfeição material, oriunda dos sentidos, e não como “Forma” ou “Ideia” abstracta, esse amor desapareceria. No fim de satisfeito o desejo, o desejo esgotar-se-ia na sua satisfação, razão pela qual, tanto no livro como no filme, Aschenbach surge como um espírito atormentado.  Mas a razão é uma escrava que não dá ordens, apenas as recebe e as cumpre até não se contradizer. Como uma maldição, Archenbach sabe da impossibilidade de materializar o seu ideal de amor, e é através da tormenta destes sentimentos que procura compreender o mundo na tentativa de abarcar o amor irrealizável. O seu amor é insolúvel. Mas o que mais seduz não é o que tem solução, mas o que não tem. 

 A angústia do envelhecimento é o que mais atormenta Aschenbach, isso é mais evidente no filme do que no livro. Logo ao desembarcar em Veneza, sente vergonha alheia por um homem maquilhado que tenta parecer mais novo. Se Aschenbach, num primeiro momento, aceita a sua condição de homem velho, mais tarde, na tentativa desesperada de se tornar aceite aos olhos de Tadzio, acede a rejuvenescer nas mãos de um barbeiro que o deixa como aquele velho pelo qual sentiu vergonha. A cena é inesquecível, quando barbeiro o deixa pronto, diz-lhe: “agora o senhor está pronto para amar”, como se amar fosse uma prerrogativa dos jovens... Dolorosa intimação, cairá no ridículo e em desgraça por se sacrificar à veneração da beleza. O scirocco encarregar-se-á do resto. 



                                                          

A definição de música para Gustav Mahler, é a de uma dor ardente que se cristaliza.

Por isso, não conheço nada melhor do que o seu Adagietto, no lirismo da sua melodia, no sentimento contido, para dar a dimensão justa à dor deste amor intocado e sem medida. 

 Ver Leonard Bernstein imerso, de corpo entregue, a cada movimento, regendo todos os tempos, fico com a sensação de aceder a uma realidade segunda.

Como se disse, este Adagietto não cessa, é infinito.

Como se abarcasse todo o sentimento do mundo, desde sempre, o movimento silencioso dos astros, lento, como se toda a dor se sentisse acolhida.


                                                          


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