ZARPAR
Regressar a Miami Vice é algo especial para mim, não só
porque fui vê-lo nos idos de 2006 com o meu filho mais velho, mas porque
contínuo a considerá-lo um filme subvalorizado. É uma ópera grandiosa de
Michael Mann. As suas preocupações estéticas e formais definem o seu cinema. As acuradas reflexões kubrickianas sobre a edição da imagem,
isto é, a sensação de tactibilidade que nos transmite, a ampliação da visão, o
tratamento da cor colando à imagem o seu peso, e a capacidade de levar as cores
a novas tonalidades cinematográficas, (afinal, as cores são diferentes
velocidades de luz), são apenas alguns dos aspectos da sua competência técnica.
As representações silenciosas dos actores (como em Blackhat), o enquadramento dos planos
como sugestão dos temas em detrimento dos diálogos, dão bem conta do seu domínio
autoral. Ainda que os seus filmes dependam da narrativa, a crescente tendência
para o abandono do enredo, favorecendo o lado contemplativo e a análise dos
personagens, faz com que Mann transgrida os códigos do género.
O crítico Peter Bradshaw assina um artigo no The Guardian em
que diz que todos os filmes de Michael Mann se deveriam chamar “Heat”,
referindo-se à temperatura escaldante da raiva masculina. Bradshaw não está a
dizer que o discurso masculino de Mann seja o da objectualização da mulher. As personagens
femininas não são meros adereços para canastrões como Colin Farrel brilharem. As
personagens podem ser conflituantes. Na verdade, ou a “terrível verdade”, utilizando a expressão Bradshaw, tanto Sonny Crockett
(Colin Farrell) como Ricardo Tubbs (Jamie Foxx) não têm um “eu” interior, isto
é, a sua amizade é subordinada à interdependência profissional e o seu eu interior
é totalmente subsumido ao trabalho, e o mesmo vale para a vida sexual e
romântica de ambos. Mais, aquilo que têm de mais próximo de uma vida interior é
a identidade falsa inerente ao trabalho de agente infiltrado, uma identidade
que mostra uma tendência para subverter o que se é na realidade. Bradshaw nada
refere sobre Isabela (Gon Li). Para mim,
é a grande personagem do filme, como exemplifica a sua autonomia sinestética. É
uma imigrante chinesa em Havana, desapaixonada e inescrutável quando a vemos a
negociar, mas revela mundos de emoção por trás dos seus olhos quando está
sozinha com “Sonny Crockett”. O seu carácter enigmático adquire contornos
ambivalentes por contraposição às figuras masculinas, que são sempre mais
lineares. A ambivalência de Isabela tem a ver com o facto de se
tratar de uma personagens que se constitue pela intersecção de dois modos de ser: é o elo que une dois mundos e, constituitivo o seu estatuto de mulher independente num universo
predominantemente masculino em que vive.
Michael Mann ao não desfigurar a transgressão de Isabela,
reconfigura um dos eixos semânticos típicos do género policial. Esse eixo diz
respeito ao facto de Isabela se identificar com uma determinada “esfera de
acção". Por
conseguinte, essa identificação permite-lhe sair ilesa (enquanto indivíduo), do
crime que cometeu, não se desfigurando, sendo por isso difícil àquele que
investiga os seus crimes (Sonny Crocket), descobrir nela a verdadeira
culpada, visto que Isabela tem a aparência de uma não culpada.
E sempre que me lembro do filme, surge-me aquela memorável imagem
que convoca uma poética própria de Michael Mann, o barco a zarpar em alto-mar…
quando Isabela diz: “he's not my
husband... i'm a business woman! I don't need a husband”. É um momento de
viragem no filme que marca o seu enamoramento. Ainda por cima a cena é
abrilhantada pela canção de Moby em background com “One Of These Mornings”.
Um autêntico quadro vivo com uma
paleta de vibrantes azuis contra a lavagem de um rasto branco.
Todos os seus filmes vão em crescendo em direção a um clímax,
que levantam a decisiva questão: estão os personagens preparados para ele? As hiper-realistas cenas de violência de Michael Mann não são uma fragmentação do seu cinema,
mas infinitude, horizontes sem fim, onde as coisas se desmoronam e colidem, uma
após outra. Miami Vice é isso: o colapso invisível dos limites invisíveis, da legitimidade e da moral.
Basta recordar que Sonny e Rico são personagens infiltradas, sobrepostas, onde
as fronteiras não estão perfeitamente delimitadas e, por isso, sempre no
limiar do colapso.
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