ZARPAR II fuga sobre um tema
Shape of things to come (Ciente das coisas por vir) e Wide
Awake (Completamente desperto), são refrões decifráveis para Miami
Vice; falam-nos de relações fracassadas e sobre o fim dos dias. Uma das muitas
razões para se admirar um filme de Michael Mann, é a seguinte: o homem faz
filmes de acção inteligentes, para espectadores pensantes. À acção, contrapõe o significado do drama moral. A ponte que estabelece entre a baixa e
a alta cultura, é algo que o diferencia bem da produção Hollywoodesca. Mas este
conceito – o de aliar cultura de massas a um formalismo que pode ou não ser
considerado erudito – de tão repetido, parece não ter perdido a força.
A
verdade é que, quando comparamos a sua filmografia com outras do
género, se quisermos exprimir uma qualidade específica teremos de radicalizá-la em terrenos riquíssimos em que os visuais estilizados e a inteligência
se aliam de um modo que não têm par e, se tentarmos caracterizar mais de perto a
sua maneira de realizar, talvez não andemos longe de Finnegans Wake. Isto é, após ter
revolucionado a linguagem com Ulisses, Joyce queria ir mais além, queria
implodir a língua inglesa. Ainda hoje há quem não entenda onde Joyce queria
chegar: à renúncia da organização hierárquica dos factos. Joyce explicou:
Ulisses passa-se durante o dia, Finnegans Wake, durante a noite. A linguagem da
noite não é a mesma do dia, ela é mais confusa, caótica. Não haveria outra
maneira de escrever aquele romance. Assim acontece com Miami Vice, só Michael
Mann poderia tê-lo feito, não haveria outra maneira de realizá-lo.
Esta é a perturbante intimidade entre os dois autores; a de
uma estética em que o próprio Mann acaba por expor nos seus filmes ao inaugurar um mundo em alternâncias de sombra e luminosidade. Aos límpidos e luminosos diurnos,
opõem-lhes a penumbra dos rastos caóticos. Disso, é significativo as imagens finais de Miami Vice, que são, para qualquer padrão, de antologia. A escuridão da noite, na cena de tiroteio, é
iluminada pelas armas de fogo. Não é uma batalha tradicional, com causa e efeito perfeitamente
interligados, está
carregada de indeterminação e adquire contornos metafísicos: o dia funde-se com
a noite e o falso funde-se com o real. A receita para um final feliz,
em que Sonny retira Isabela da cena, afinal, revela-se um anti-climax: a
identidade falsa de Sonny é desvelada diante dos seus olhos. A câmara regista-lhe as expressões de
pânico e incredulidade e, por fim, de tristeza. Não mais poderão ficar juntos. É
o preço a pagar.
Sonharam um dia zarpar para um lugar acima do mundo. Perderam-se no seu centro, no centro de mundos inconciliáveis. A beleza do seu amor está, neste “fracasso ambicioso” que pairou sobre ambos desde o primeiro momento, até ao fim. Ficar-lhes-á marcado na memória esse sonho, como uma dobra numa carpete, como se tivessem feito um sinal para voltar a pisá-la, um dia.
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