O silêncio



                                                        
Secção Ruy Belo cá de casa.


Que importa que morramos se a tarde é de sol
e o céu se abre às lágrimas
que sobre a cidade choras?
Esmagam-se lá longe contra a igreja as casas
aonde os homens nascem e aceitam
a grande humilhação da morte
onde as mulheres acenam tristemente panos sujos
de não dizerem adeus a nenhum barco
onde já ninguém sabe onde os anos começam
Pesadamente vão caindo os sinos
e tu a um e um desfolhas
os olhos sobre o tempo
O que trocamos são crostas de silêncio:
tivéssemos em teu reino o lugar
que esta folha de outono tem sobre o asfalto
e a espaços certa música na alma
Que importa que morramos se o passado está certo
se voltas para nós a mágoa que te molha a face
de virmos de tão longe tendo-te tão perto? 

Ruy Belo

 (in Aquele Grande Rio Eufrates (“Jerusalém Jerusalém… ou Alto da Serafina”). Editorial Presença, 1996).
  

A omnipresença da morte é, em maior ou menor grau, quase asfixiante na poesia de Ruy Belo. Em Aquele Grande Rio Eufrates, o seu primeiro livro, a morte, mais do que redenção, é interrogação. Apesar de estar patente os vestígios da (Opus) e de Dei neste poema, aspecto que viria a mudar definitivamente a partir de “Homem de Palavras”, a fé, é, como se disse, interrogativa. Disso nos dá conta na primeira e última estrofe ao reencenar a portentosa alusão do choro de Cristo sobre Jerusalém: “Que importa que morramos se a tarde é de sol/ e o céu se abre às lágrimas/ que sobre a cidade choras/ (…) Que importa que morramos se o passado está certo/ se voltas para nós a mágoa que te molha a face/ de virmos de tão longe tendo-te tão perto?”

É certo que esta interrogação espera mais da palavra filosófica e poética do que Deus. Afinal que distância é esta, que “solidão medonha, fundamental, solidão dos filhos de Deus” (escreverá Ruy Belo, em epígrafe) que acompanha o destino humano? É neste contexto que surge mais tarde o livro “O Problema da Habitação” em que a sua poesia coloca as seguintes questões: onde habitar, se já não há morada? Onde encontrar abrigo, calor, um ponto de referência e um fim do caminho – as funções de uma casa, afinal – se Deus não existe?

 Para Ruy Belo, é problemática a fundamentação da existência humana à luz da transcendência, isto é, como fundar uma comunidade dos “filhos de Deus” se o que temos é apenas o silêncio de um Deus ausente?


Pesadamente vão caindo os sinos
e tu a um e um desfolhas
os olhos sobre o tempo
O que trocamos são crostas de silêncio:
tivéssemos em teu reino o lugar
que esta folha de outono tem sobre o asfalto
e a espaços certa música na alma.


É, nos extremos desta estrofe, que Ruy Belo nos dá a dureza da existência humana - sem ponto preciso de orientação transcendente - através da imagem do bronze e do asfalto. Tanto os sinos da igreja, na sua função de organizar o tempo social com fundamento na religião, quanto a folha na sua queda em direcção ao asfalto, convergem para construir a noção da realidade última da existência humana. Entre o cair simbólico dos sinos e o cair literal da folha, há um “tu” que desfolha “os olhos sobre o tempo”, quer dizer, sobre a vida, mas desse olhar apenas recebemos “crostas de silêncio”.  É como se o que ganhássemos com a passagem dos dias não fosse mais do que o acumular do silêncio de Deus até formar crosta. As árvores, após perderem as suas folhas, ainda podem ser renovadas, nós, humanos, não. A beleza lírica deste poema está na imagem derradeira da folha, na leveza da sua queda, a leveza da fé que apela ao (ainda) católico Ruy Belo a acreditar no “reino” onde “a espaços certa música na alma", aguarda o repouso eterno.



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