O mundo não aguenta
"No amor, o
anfitrião é o que deixa o outro passar primeiro."
- Karl Kraus
Uma análise
superficial deste aforismo e, relacioná-lo-íamos com o amor cortês. Mas, não é propriamente isso. O aforismo surge num capítulo intitulado e dedicado a Eros, o
Amor, na edição d’O Apocalipse Estável pela Fyodor Books (2015), trad. de António Sousa Ribeiro. Não se trata pois, de
uma verdadeira pessoa, nem de uma energia disruptiva, mas eruptiva, primordial, que faz surgir
e desenvolver os seres. É, por conseguinte, um princípio de vida, uma força vital.
Importa não confundi-lo com outro Deus a que os romanos chamaram
Cupido, cujas flechas desencadeiam as paixões. O Eros primordial, como se sabe,
teve como missão fazer passar das trevas à luz todas as divindades que lhe
sucederam.
É, portanto,
Caos o anfitrião. É ele quem tem de deixar passar o Amor em primeiro lugar para
que o mundo se possa organizar. Daí, a fundamental pergunta: como se passa da
desordem para um mundo harmonioso, organizado e belo? Para Karl Kraus, “o aforismo nunca coincide inteiramente com
a verdade. Ou é meia-verdade ou verdade e meia” (O apocalipse Estável pág.
76). Para ele, a crise, era em primeiro lugar a da linguagem. Quer isto dizer,
que ela não é o lugar unívoco da verdade quando não tem a capacidade de
coincidir exactamente com o real. Mas é fundamentalmente aí que reside a
crítica satírica em muitos dos seus aforismos. O aforismo de Karl Kraus, não
deixa por isso de apontar o dedo ao anfitrião. Seja ele quem for, desde que lhe
seja inerente a responsabilidade de fazer surgir um mundo reificado em que o homem é mais um objecto entre os outros objectos.
Olhando para
o mundo, a sensação com que ficamos é de que o futuro se esgotou como resultado de processos de desenvolvimento cegos. É bom que tenhamos onde repousar... Recortamo-nos a nós mesmos nos limites do
vocabulário que cada um transporta; o amor é para a evocação de quem dele viveu
a parcela que lhe coube, a balada de uma doçura perversa. Repousar nela a
fadiga ao final do dia, é bom. Mas tudo o que é simples é complexo. Em conclusão: "no amor, o anfitrião", é o símbolo que
unifica num todo a dispersão avulsa da desordem da vida. Não é coisa pouca.
Imagem: “Hoje”, do pintor chinês Zhong Biao, em que ao centro está representado o caos.
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