Deus e o Diabo


                                                      


Quem, ao deparar-se com esta tela de Carlos Schwabe, adivinharia o zeitgeist histórico nesta alegoria de “Tédio e Ideal” (1907), bloqueados num abraço torturado, em que a mulher-anjo é transformada em mulher pecado e o pecado em virtude? No entanto, o quadro produz o seu próprio discurso, uma veia, uma artéria que nos permite investigá-lo a fim de estabelecer a relação intertextual com a literatura. Com efeito, a pintura de Schwabe Ilustra um livro banido de tonalidade sombria: o tédio; melancolia; volúpia; luxúria; demónios, maldições; vermes; serpentes; e morte. Folheemo-lo, logo no início, num poema chamado “Ao Leitor”, o autor avisa-nos:

“Na almofada do mal é Satã alquímico
Quem docemente encanta o nosso espírito".

E, para não deixar quaisquer dúvidas do que nos anima o espírito, mais adiante reafirma:
“É o Diabo que tem os fios que nos manuseia!”

Termina o poema mandando mordazes e cordiais saudações:
“Hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão!”

                                                             
                                    

O livro é As Flores do Mal e o poeta, o francês Charles Baudelaire. Foi com ele que o Mal se tornou figura poética. Quem era o hipócrita leitor a quem Baudelaire chamou irmão? Trata-se de uma fina ironia destinada ao público que consumia poesia na Paris oitocentista: o burguês Ideal. Mas, só é ideal na medida em que não se questiona a si próprio. Por conseguinte, a tela fornece-nos a imagem simbólica que desvela por uma via lúdica o complexo conceito de modernidade. Mas desde logo, deparamo-nos com o carácter problemático de tal noção: será que cada período histórico, foi moderno em relação aos períodos anteriores? A resposta é não. O conceito de “modernidade” deve-se àquele que Baudelaire impôs. Isto é, antes dele o termo não tinha o actual significado. Para Baudelaire, “modernidade” implica intervir no mundo, a escolha intencional do presente contra o passado, e não daquilo que no presente configura ou prolonga o passado. O mesmo é dizer que o tão propalado “eu” perde permanência, constância e identidade. Por isso, cabe-nos a nós exercer o “cuidado de nós mesmos”, repudiando a tutela da religião e da ciência. Baudelaire recusa submeter a arte ao primado do Belo ou de um Bem. Quer dizer, a cabeça tacanha do homem Ideal é incapaz de proferir um juízo estético para lá do seu gosto pessoal ou da sua concepção de beleza. Por conseguinte, o papel da arte para Baudelaire, não é o reflexo do mundo, mas o de contestá-lo e recriá-lo.

A modernidade não é o desencantamento da cultura ou da religião, como viria a defender mais tarde Max Weber, mas o “abraço torturado” da pintura de Schwabe que "infecta" o Ideal: o Tédio. Em Baudelaire coabitam dois sentimentos contraditórios: “o horror da vida e o êxtase da vida”, sendo que a vida é “sonho e consciência”,tédio e ideal”.

Segundo ele, o tédio é o deserto demoníaco e caos. Ao abordar as transformações sociais e culturais da sociedade industrializada, Baudelaire entende-as segundo uma “teologia do inferno”, sendo a modernidade a “queda de Deus”.

Para Baudelaire o movimento do homem quer para Deus quer para o Diabo é um processo poético e estético. Não se trata de cisões de dois mundos – céu e inferno – um vez que esta separação é consequência da cultura dualista da qual Deus é o criador, cultura que polariza Bem e Mal, matéria e espírito, corpo e alma, Deus e o Diabo. Não é isso, Baudelaire salienta:

“A Teologia. O que é a queda? Se é a unidade que se tornou dualidade, foi Deus quem caiu. Noutros termos, não seria a criação a queda de Deus?”


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