Razões
meridianas II
No
extremo dos extremos
"A Arte está a chegar ao fim? A
poesia morre por se ter olhado de frente, tal como morre aquele que viu Deus? O
crítico que considere o nosso tempo, ao compará-lo com o passado, não pode
deixar de exprimir uma dúvida e uma admiração desesperada pelos artistas que
apesar de tudo continuam a produzir. Mas quando alguém prova, como Vledimir
Widlé num livro rico de cultura, de razão e lamentos, que a arte moderna é
impossível – e esta prova é convincente, talvez demasiado lisonjeira -, não
estará a realçar a exigência secreta da arte, que é sempre, em todos os
artistas, a supressa do que é sem ser
possível, do que deve começar nos extremos dos extremos, obra do fim do mundo,
arte que só encontra o seu começo aí onde já não há arte e onde faltam as
condições da arte?
(…)
Toda a arte tem origem numa
falha excepcional, toda a obra de arte é a execução dessa falha de origem, de
que resultam para nós a ameaça de aproximação da plenitude e uma luz nova.
Tratar-se-á de uma concepção própria ao nosso tempo, este tempo em que a arte
deixou de ser uma afirmação comum, uma tranquila maravilha colectiva, e é tanto
mais importante quanto impossível? Talvez. Mas como erma as coisas outrora? E
que vago outrora é esse, onde tudo nos parece tão fácil, tão seguro? Pelo
menos, o que tem que ver connosco é o hoje e, quanto a hoje, podemos afirma
resolutamente: um artista não tem a possibilidade de se enganar demasiado, nem
de se ligar demasiado ao seu erro, num contacto grave, solitário, perigoso,
insubstituível, onde esbarra, com terror, com delícia, nesse excesso que, nele próprio,
o conduz para fora de si e talvez para fora de tudo.
(Os discípulos, os imitadores são
aqueles que, como os críticos, fazem do erro razão, que o estabilizam, o
serenam, mas também o realçam, de modo a torna-lo visível, e então é fácil aos
críticos mostrarem o erro, a que impasse conduz, como que malogro se paga o
êxito, e como o êxito foi um malogro).
Esta relação com o erro, esta relação
difícil de atingir e ainda mais difícil de sustentar, que esbarra, naquele que
está sob o fascínio do erro, numa dúvida, num desmentido; esta paixão esta tarefa
paradoxal inclui igualmente o romance, o mais feliz dos géneros, apesar de
sempre termos ouvido dizer que chegara ao fim. E isto era afirmado não por que
o romance tivesse deixado de produzir grandes obras, mas sempre que grandes
escritores escreviam grandes romances, unanimemente reconhecidos como livros
literariamente notáveis. É que aparentemente esses autores tinham quebrado
qualquer coisa: não esgotavam o género, como fizera Homero em relação à
epopeia, mas alteravam-no com tanta autoridade e com uma força tão embaraçosa,
por vezes tão embaraçada, que parecia impossível regressar à forma tradicional,
ou ir mais longe no uso da forma aberrante, ou até repeti-la. Is to foi dito na
Inglaterra a propósito de Virginia Woolf de Joyce; na Alemanha a propósito de
Broch, de Musil e até da Montanha Mágica. Na França, a situação é ligeiramente diferente.
A agitação provocada por Proust foi imediatamente recoberta por tamanha onda de
admiração universal que este fenómeno, aliás um dos primeiros, parecia provar apenas
o génio de Proust, deixando intacto o horizonte tradicional do romance. (…) O
romance, que absorve e concentra quase todas as forças de todos os escritores, parece
também uma arte doravante sem futuro.
A
excepção e a regra
Nesta visão extremamente apressado
das coisas deve haver alguma verdade. Decerto que também Balzac, ao criar uma
obra monstruosa, deforma fortemente o género, apesar de ter sido ele a
introduzi-lo na literatura. Mas Balzac tem uma posteridade. Daqueles autores
que nomeámos nenhum gerou nada. Diga-se o que se disser, nem Proust nem Joyce
dão origem a outros livros que se lhes assemelhem; o seu único poder parece ser
o de impedirem os imitadores e desesperarem as tentativas de semelhança. Fecham
uma saída.”(…)
Murice Blanchot, O livro por Vir. Tradução de Maria Regina Louro e prefácio de Francisco vale. Relógio D'Água, Outubro 2018.
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